quarta-feira, 12 de junho de 2013

Primeiro Passo

O sol batia forte na janela de Ana naquela manhã e atravessava a frestas com facilidade para iluminar fracamente seu quarto, mas ela não veria seu quarto iluminado naquele dia. Ela não o veria nunca mais, na verdade. Afinal, foi na madrugada daquele dia, antes mesmo do sol pensar em nascer, que ela decidiu que cansou de dizer na frente do espelho “e se...?”.

Ela tinha chegado aos trinta razoavelmente bem, mas ainda morar com os pais era algo que soava deslocado quando ela olhava para sua vida em retrospecto. Todas as escolhas que ela havia feito e que a levaram àquele ponto passaram por sua cabeça enquanto ela fechava a porta por fora e tomava aquilo que ela poderia considerar com folgas a atitude mais corajosa (ou talvez inconsequente) de sua vida. Ela se acostumou a pensar nas consequências, mesmo quando fazia algo de moral dúbia (ou que assim seria considerado).

Ironicamente ela gostava de novidade e novas experiências, mas mesmo assim tinha um certo pavor racional de sair de sua zona de conforto (afinal, se fosse alguma atitude “definitiva demais”, ela não teria como voltar atrás). E ela assim havia sido desde que ela conseguia se lembrar, desde sua primeira decisão própria, sem ajuda da mãe ou do pai: aos dez anos, aquela primeira blusa que havia escolhido na loja, que, apesar dos pais pagarem, ela que escolheu, e não fugia em absolutamente nada do estilo que sua mãe sempre comprava para ela.

Havia tido alguns namorados, mas sempre que sentia que algo sério estava tomando forma, acabava o relacionamento. O mais longo havia durado um mero ano e meio, mas, ao ver o rapaz se ajoelhando no meio do restaurante, ela não teve nem tempo de pensar na sua reação e saiu correndo antes mesmo de a entrada chegar. Antes mesmo de notar que ele também não estava preparado para dar aquele passo e que ele havia apenas se abaixado para amarrar o sapato.

Adorava crianças, e, apesar de não sentir arrependimento propriamente dito, havia bem lá no fundo uma dose de lamento reprimido. O mesmo rapaz que se abaixara para amarrar o sapato a engravidara aos oito meses de namoro, mas nem tivera tempo de saber devido ao aborto que ela realizou em completo silêncio e total solidão. Ninguém além dela mesma jamais saberia daquilo.

Amava artes de forma geral: música, teatro, pintura. Talvez seu arrependimento mais profundo fosse não ter feito nada daquilo nunca, afinal não havia como ter uma vida regrada e cheia de certezas nessas profissões. Vocação não rende números na conta ao final do mês, ao contrário do seu curso superior de ciências contábeis, coincidentemente a mesma profissão de sua mãe.

Não era à toa que, mesmo ganhando o suficiente para morar sozinha há pelo menos cinco anos, ainda não tivera coragem o suficiente para fazer algo mais que olhar os classificados por um apartamento. E isso gerava um zumbido em seu cérebro toda noite antes de dormir há quatro anos e meio.

E foi esse mesmo cansaço que, na madrugada de seu aniversário de trinta anos, foi catalisador dessa atitude corajosa e inconsequente. Era madrugada de domingo, período em que ela estava sempre em casa, afinal nunca saíra sábado à noite, que ela levantou, olhou no espelho do banheiro de rosto inchado pelo tempo passado no travesseiro, que ela disse “e se...?” pela última vez. Acordada às 3:17 da madrugada, mala pronta às 4:03 da manhã e passos lentos na sala em direção à porta, acompanhados apenas pela sua reza silenciosa por seus pais, ela ia embora. Olhou uma última vez em direção a seu quarto e pronunciou um adeus silencioso que apenas seus lábios ficaram sabendo. E, às 7 da manhã daquele mesmo dia, seu quarto vazio estava fracamente iluminado pelo sol através das frestas da janela. Ela não veria aquele quarto mais, mas não por ter realmente seguido em frente. Duas horas na rua haviam sido o suficiente para convencê-la que a atitude impulsiva não havia sido uma ideia exatamente boa, mas fora um pouco divertido. Enquanto ela voltava para casa, alguém alcoolizado a atropelou. E aquele que havia sido o pontapé inicial para a concretização de todos os futuros “e se...?” havia sido também o último. O primeiro passo foi dado, mas era muito tarde.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Quem Eu Não Feri

A sua voz está fraca e o seu amor está escasso
Amor, me diga, por favor, o que eu faço?
Os caminhos se cruzaram, mas as vidas não
Os pecados são os mesmos, mas as penitências são em vão

O seu medo se fortalece enquanto você perde a esperança
Amor, me mostre, por favor, como percorrer essa distância
Os olhares se cruzaram, mas os sentimentos não existem
Por que nós devemos viver enquanto outros desistem?

Tesouros existem para não serem revelados
Eu sei o que deve ser dito e o que deve ser guardado

Não dê adeus, não diga olá
Não me diga o que falar
Não quero saber como agir
Não quero ser a cura de quem eu não feri


O nosso tempo está curto e o amanhã está longe
Amor, me diga, por favor, onde o seu coração se esconde
Os amores se cruzaram, mas não no mesmo coração
O que te faz acreditar não é uma visão

Tesouros existem para não serem revelados
Eu sei o que deve ser dito e o que deve ser guardado

Não dê adeus, não diga olá
Não me diga o que falar
Não quero saber como agir
Não quero ser a cura de quem eu não feri


Não tenho culpa, não tenho do que me arrepender
Não vou fugir nem me esconder
O medo é uma barreira, não um limite
Só há sentimento desde que você acredite

Seus olhos se fecharam, me deixe vê-los mais uma vez
Me diga sim ou não, nunca talvez
Não me culpe por não desistir ou por tentar
Eu não sou alguém para se amar
Não dê adeus ao sonho porque você acordou
Há outra chance para quem errou

Tesouros existem para não serem revelados
Eu sei o que deve ser dito e o que deve ser guardado

Não dê adeus, não diga olá
Não me diga o que falar
Não quero saber como agir
Não quero ser a cura de quem eu não feri