terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Aquela Lacuna Reservada ao Amor

Havia acordado do melhor sonho da minha vida. Abri os olhos, estava deitado numa cama macia, grande – como a minha própria cama –, mas não estava em casa.

Em meio aos lençóis alaranjados pela forte luz do sol do fim de tarde, meus olhos tateavam uma nova realidade, uma pista que me fizesse saber onde eu estava e porque estava ali. Foram longos segundos, até me lembrar que não havia sonhado. Estava num lugar lindo, com um sentimento de que era exatamente onde deveria estar. Havia estado com aquela mulher que devia ser a mais linda que a qual eu já estive. Embora ela não mais estivesse lá, eu sabia que era real. Haviam se passado apenas algumas horas, e aquele resquício que ela deixou de amor terno que preenche o coração de quem faz sexo com quem se ama ainda estava lá. Era impossível ignorá-lo.

Lutando contra aquele sono que eu sempre tenho quando acabo de acordar, ignorando o automático “só mais cinco minutinhos” que estava na minha mente, eu levantei. Era estranho acordar sozinho, estranho a porta estar fechada. Mas, e daí? Percebi que a minha camisa havia desaparecido, então entrei na bermuda com a qual havia chegado, e saí.

Ao pôr meus pés na sala, me deparei com ela. Deitada no sofá, espremida (embora houvesse espaço) em um pequeno canto, tão encolhida que poderia ser coberta por uma toalha. Ela vestia uma camisa – a minha camisa preferida, e isso me deu ainda mais certeza de que era tudo real, que a mulher que eu desejara, que havia cuidado de mim nos piores momentos, rido comigo nos melhores; a mulher que havia se tornado a alternativa lógica a se procurar nos bons momentos e nos ruins, a melhor mulher que alguém poderia querer, havia escolhido a mim – e aquela samba-canção do Star Wars (que ela me contou que havia comprado pra dormir, mas que, na realidade, eu sabia que ela queria mesmo era sair com ela na rua).



(Se há algo a saber sobre ela, é o seguinte: ela me ama. Ela não cansava de me dizer isso, embora não o fizesse mais porque sabia que eu não a amava (que tonto que eu sou!). A maioria das pessoas simplesmente esconderia algo assim quando soubesse que não era correspondida. Ela me disse que não estava fazendo nada de errado e que o amor dela não dependia do meu. Que preferia que eu a amasse também, mas que simplesmente não conseguia evitar o que sentia, e decidira simplesmente seguir o curso do próprio coração.
Nos sentíamos atraídos um pelo outro. Por incrível que possa parecer, eu, um cara longe de ser bonito e mais esquisito do que de costume, sem atrativo físico algum, havia atraído uma mulher como ela, que reunia tudo que qualquer pessoa, inclusive você, já quis em alguém. E ela era uma daquelas mulheres. Era linda e nada conseguia fazê-la deixar de ser. Uma garota comum, com as “gordurinhas” comuns, sexy as 24h do dia, sem esforço algum)



E ali, deitada à minha frente, com a minha camisa preferida, uma samba-canção, os cabelos compridos jogados pelo sofá, estava ela. Não na cama, dormindo abraçada a mim, com os seios nus e o rosto repousado no meu corpo. Estava encolhida no sofá, completamente vestida, e aquilo a tornava ainda mais linda. A havia visto totalmente nua, e era a coisa mais linda que já havia visto. Jamais conseguiria explicar como me senti durante aquelas horas juntos. Ela fazia tudo ao redor dela sumir. Parecer banal, desnecessário. Embora insegura, como se fosse sua primeira vez, as mãos pequenas tentando cobrir o próprio corpo, os olhos que não conseguiam repousar em lugar nenhum, mas que também não saíam do chão, ninguém faria idéia de como ela era.

Talvez a maioria de vocês achasse estranho vê-la deitada, vestida, no local mais desconfortável que poderia estar. Mas eu simplesmente não conseguia pensar nisso, porque, mesmo com toda a beleza que seu corpo nu tinha, era indubitável a necessidade de abraçá-la e cuidar dela que me ocupava naquele momento. Então eu deitei ali, naquele sofá espaçoso, e dormi junto dela. Sentindo seu cheiro e ouvindo sua respiração.

Quando acordei, ela já havia acordado. Com seus grandes olhos escuros abertos, fixados no teto da sala, sorria sem parar como se estivesse em transe. Acariciei e beijei seu rosto, e continuei abraçado a ela. Ela me beijou, e aquela estranheza que eu deveria ter sentido antes, me acometeu, como uma grande onda num mar calmo. E, calado pelo segundo mais longo da minha vida, eu ponderei, e acabei perguntando porque ela havia se vestido e saído.

Com uma voz macia e dócil, baixa e constrangida, ela me perguntou:

“Mas não era aqui que eu deveria estar?”

Eu não entendia nada. Disse a ela o quanto ela era adorável e que podia ficar olhando seu corpo por horas, sem me cansar. Ela me deu seu olhar mais calmo, sentou-se e abaixou os olhos. Esperou que pudesse acontecer algo que a livrasse de falar sobre aquilo, mas, enfim, simplesmente me explicou:

“Eu já me apaixonei algumas vezes, mas só estive com dois homens antes de você. Sabia que não era assim com nenhuma das minhas amigas, mas, claramente eu não sou como as minhas amigas. Minha primeira vez parecia ser como a da maioria das garotas: eu estava tímida e com medo. Ele foi gentil comigo e o desejo anterior parecia não ter fim. Mas logo após a nossa primeira vez, ainda com a mesma insegurança do início, e ainda com as luzes apagadas, ele me deu uma camisa e me pediu pra vestí-la. Disse que era melhor eu me levantar. Que eu iria perder a hora, que precisava ir. Como se ele simplesmente não quisesse, a nenhum custo, que eu ficasse ali. E assim foi. Dali pra frente, foram assim todas as vezes: sempre no escuro, sempre tendo que me vestir e ir embora.

E assim foi também com o segundo. O sexo era melhor, mesmo que eu, novamente, não conseguisse ver seu rosto. Porque estava escuro. E, novamente, havia sempre uma roupa a vestir (qualquer uma servia) e um compromisso que eu precisava cumprir. Simplesmente me vestia e ia embora da sua vista. Me aninhava no sofá ou pedia um táxi. Ou pegava o carro e ia embora. Com o tempo, eu simplesmente perdi a esperança de que ele me pedisse pra ficar ou dissesse que queria admirar meu corpo. Como é com as minhas amigas. Porque, claramente, eu não sou como as minhas amigas. Com o tempo, você percebe que as pessoas são diferentes, e que não podem ter o melhor de tudo. Você simplesmente luta pelo melhor que pode ter e aceita que não há como forçar sentimento em ninguém. As pessoas simplesmente não serão assim pra mim. Eu tenho uma casa confortável, três cachorros lindos e a melhor vista pra praia. Tenho você, que eu amo (sei que você não se sente bem quando eu digo isso, mas é a verdade), e tudo tem suas limitações. Até o sexo. E certas coisas não mudam.

Mas agora eu estava em casa. O que mais poderia fazer? Não havia para onde ir, então pensei que se talvez eu fechasse a porta, pudesse fingir que não estava ali. Por vias das dúvidas, eu me vesti (e me desculpe por usar a sua camisa), porque tive medo de você me encontrar. No fim das contas, foi o que aconteceu. Ao menos havia me vestido. Se eu posso contar um segredo, é que a pior parte é quando alguém te pede pra se vestir. É o que eu acho. Não me incomodo, é assim que as coisas são pra mim, mas ter alguém pra dizer isso... é o fim”.

E continuava olhando pra baixo, como se tivesse feito algo de errado. Me recusei a acreditar no que ela havia dito. Com certeza, ela era melhor do que as amigas dela. Com certeza havia algo de errado com esses dois. Mesmo contando-lhe tudo e procurando ouví-la sempre, eu não fazia idéia de como havia sido para ela. Nunca conseguiria supor que haviam a tratado desse modo, que nunca haviam feito ela saber como ela era linda, como seu sorriso iluminava qualquer lugar e como o sexo era intenso e divertido. Ninguém nunca a havia feito entender de uma vez por todas que ela merecia o melhor. E foi o que eu disse. Que não fazia idéia do que lhe havia acontecido, que ela era linda, que merecia o melhor.

Ela, com aquele sorriso amarelo, limitou-se a concordar, me deu um beijo e saiu sorrindo, se esforçando para fazer parecer que aquela conversa não era nada e que estava tudo bem. Realmente, ela parecia estar conformada com toda aquela situação, mas eu não estava. Então levantei e fui atrás dela, toquei seu rosto e disse, olhando em seus olhos, que ela era incrível e linda, que o sexo era maravilhoso. E que...

“...que algum dia alguém me fará perceber que eu mereço apenas o melhor. Tá certo”, ela veio completando a frase. Exatamente o que eu ia dizer. E foi nesse momento que eu percebi. Percebi que não havia sido o primeiro a dizer isso a ela, e que provavelmente não serei o último. E fiquei ali, fitando o vazio, automaticamente lhe entregando o saleiro e o pimenteiro enquanto ela cozinhava algo e dava a tudo aquilo um ar extremamente banal. Percebi que ela podia achar que eu era como os outros, e imediatamente me enojei dessa idéia. E disse, disse a ela que tudo que eles haviam feito estava errado, que eu não era como eles. Ela deu um sorriso de “óbvio que não é, não seja tonto”, e me respondeu:

“Você é completamente diferente deles. Você cuidou de mim e me fez eu me sentir especial. Olhou nos meus olhos, sem me esconder do sol do dia. Me disse que eu era perfeita e me fez sorrir, e eu nunca havia sorrido em momentos como aquele. Se esforçou por mim e se importou comigo. E eu era a única ali. Como é com a maioria das garotas.

Mas você não me ama, e eu sei disso. Sei que não sou perfeita, que não sou a mais bonita, que não sou a única e não serei a última. Que não serei eu quem fará todas as outras sumirem. Sei que sou boa: uma boa amiga, uma boa companheira. Talvez você até ache que eu encontrarei alguém me fará acreditar isso. Mas essa pessoa não existe. É como jogar basquete, a bola está com você e o seu papel é passa-la ao próximo. E essa bola são todas essas palavras. Até que elas serão jogadas em uma cesta. Sei que você quer que eu me sinta bem, e eu agradeço por isso. É muito mais do que qualquer um já fez por mim...”

“Theodora, eu não sou como eles”.

“Entenda bem, eles não são monstros. Não foram caras que me trataram mal. Eles simplesmente foram sinceros e fizeram o melhor que puderam pra que eu me sentisse bem. Eu era tola e não sabia. E eles, fazendo o seu melhor, me deixaram o espaço que eu precisava pra entender tudo isso.

Você também não é um monstro, você é o melhor. Quero que você saiba disso. Você foi o melhor de todos. E eu te amo, isso foi e é apenas com você. Mas você precisa saber que eu não sou como as outras garotas, e está tudo bem. Mesmo que eu não precise me vestir ou que eu possa dormir abraçada e segura (e estar ali, abraçada e segura, foi a melhor sensação que eu já tive), você continuará sentindo o mesmo, e eu prometo que está tudo bem, que não tenho e nem nunca tive esperança de que seria diferente. Apenas estou, já que você faz questão de falar sobre isso, sendo sincera e estabelecendo os limites pra que você não precise se esforçar pra me fazer crer no que quer que seja. Eu já sei. Não diminui o quanto você me fez feliz. Não era isso que tinha em mente, e não é isso que eu espero. Espero que possamos simplesmente ficar juntos, sem termos que responder perguntas que nenhum de nós quer responder. E você já fez muito melhor que isso, em algumas horas. Então vamos esquecer isso, tá? ”

Me deu um beijo rápido e voltou para a comida. Estava feliz cozinhando, estava feliz com aquilo tudo, estava feliz comigo. Constatei que ela realmente acreditava naquilo, e, pior, constatei que eu era exatamente como eles. Não a amava, embora sentisse um afeto e um atração enormes por ela. A queria bem e queria que ela tivesse o melhor. Sabia que eu não daria isso a ela, sabia que meu coração não estava disposto a dar a ela o amor que ela merecia. E soube, naquele momento, como a vida era injusta. Soube que ela nunca saberia o quanto podia ser especial para alguém, mesmo que esse alguém ainda não tivesse aparecido. E soube que esse alguém não apareceria, e que ela seria alguém que merece algo que não terá.


Hoje, anos depois, eu vejo. Vejo que ela, em seus 29 anos de uma sabedoria quase élfica, me fez entender que a vida era uma droga, que algumas pessoas simplesmente têm algumas coisas, e outras não. E que não adianta dizer que é idiotice e que não existe isso. Passar essa frase de boca em boca não vai fazer diferença se você não for esse cara. E eu não sou, e não sei se alguém será (e essa é a pior verdade que eu já precisei admitir), então o que eu tenho para ela é o esforço em dar-lhe todo o afeto possível, cuidar dela e fazê-la sentir segura, feliz e satisfeita. E esses foram os quatro dias mais felizes que eu poderia ter tido ao lado dela. A desejo até hoje e nunca deixarei de deseja-la. Tivemos e ainda teremos muitos dias como esse, ainda sinto o seu amor e o seu companheirismo, e ainda tenho o mesmo afeto e o mesmo companheirismo para dar-lhe. Sei que ela teve outros depois de mim e que era o mesmo com todos. Eles não a amavam. Tinham afeto, e alguns deles até paixão, mas não a amavam. Talvez dissessem o que eu a disse, talvez apenas se limitassem a fazê-la o mais feliz que eles pudessem. Exatamente como eu fiz. Mesmo com aquela lacuna reservada ao amor.

domingo, 13 de setembro de 2015

Familiaridade

Você se sente mal, você se sente triste. E isso é a única coisa que consegue sentir. Sem porquê. Não sente o direito de dizer a ninguém, todos têm a própria vida, e ela corre feliz.
Parece horrível. E é. Mas, de algum modo, estar mal e estar triste é como estar em casa.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Construir o Mundo

É o tipo de coisa que eu vejo e, inevitavelmente me faz sentir vergonha de não tentar ser alguém melhor. Por isso eu tento o tempo todo. Mesmo quando me acham grossa. Não existe o "não merecimento". Todos merecem coisas boas. Se não dão coisas boas aos outros, não é nosso problema, certo? Não gosto do "você tem o lado meu que merece". Não é sobre os outros, é apenas sobre você. Eu não consigo sempre, mas é por mim, mesmo. Você pode tentar arrancar sorrisos, ou não. Pode tentar fazer o bem. Ser o grãozinho de areia de sorrisos pelo mundo
Me faz triste ver dizerem " já fui assim, mas a vida me deu lições que me fizeram um pouco mais amargo". Então eu apenas me dedico a resgatar um pouco delas fazendo o bem, sendo um pouco como ele. As pessoas que são boas não deveriam sofrer nunca. Nenhuma deveria, muito menos elas. Acho que cada um precisa de um coração colorido, um monte de amor pulsante. Mas as próprias pessoas estragam isso. Elas destroem os corações, despedaçam os amores.
Já tentei fazer bolo, não funcionou. Já tentei e não consegui. Posso suportar algumas quedas, mas não aguento mais ver pessoas sofrerem sem merecer. Pessoas se amargurarem por serem boas. Usarem o amor das pessoas contra elas. Cada um sabe do seu bem. Faz o que precisa ser feito. Se dedica a alguma coisa. Dedico meu tempo a tentar resgatar corações. Fazer crerem que há sim algo de bom a ser aproveitado, a ser vivido. Que devemos acreditar que as pessoas são boas sem que elas precisem provar isso.
Me chamem de boba, já me chamaram de coisa muito pior. Mas nem sempre é fácil acreditar nisso. Só que eu me recuso a me render por pessoas que não fariam o mesmo por mim. Vocês podem tentar, ou podem viver desconfiados. A vida é isso? A escolha é sua.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Me Diga Você

Tudo o que posso dizer sobre isso é que sou a pessoa que disse que não conseguia ser. Porém meu coração se sente em casa, e é isso que não entendo.
Sempre pensei que faltava algo em mim, como se não pertencesse a lugar algum. Sempre soube, dentro de mim e com todas as minhas forças que minha Vienna não estava no mapa. Talvez não esteja. Mas hoje, no lugar onde sempre estive, no lugar que não era meu, eu sinto apenas que sou quem deveria ser. Sou quem eu quero, sentindo o que sinto.
Hoje eu estou novamente com medo. Mas, devo confessar que esse é o mais fraco dos sentimentos. Como se não importasse, como se o amanhã pertencesse a outra vida. Como se Vienna tivesse pousado em mim. O que eu sinto, e é ainda mais difícil admitir isso, é algo estranho. É realmente o não-sei-o-quê. Acho que quero nem racionalizar tanto isso.
Confesso que estou menos poética hoje. Se tem uma coisa que aprendi com esse "não-sei-o-quê é que quanto mais você pensa, pior fica. Pensar piora, agir melhora. Mesmo quando dá errado, dá certo. E meu coração sempre está preparado para quando não funciona. Não reclamo, nem me importo. Ou não sei. Me reconheço cada vez menos. Sou realmente Sweetie agora.
A verdade, a grande e maciça verdade, é que não sei quem eu sou. Me defini sendo durona, do tipo que não precisa se esforçar para descrer na própria felicidade. Sem fazer nenhum esforço. Mover nem uma palha.
Hoje eu me olho e vejo um sorriso totalmente sincero no rosto. Mas de um tipo diferente. Como se a vida trouxesse uma felicidade diferente. Ou os músculos do meu rosto encontrassem um modo diferente de sorrir que eu desconhecia. Tenho medo, felicidade e muita coisa que não entendo junta. Mas não quero entender. Quero apenas ser.
Sinto que sempre fui assim, que hoje me reconheço. Me lembra todo esse tempo aqui. E o dia de um dos posts do Bruno. E é isso que tem pra hoje. A mais genuína identificação com aquele texto.
"Será que é amor?"
"Não sei, me diga você".

Verdadeiramente,

Sweetie.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Caminho Escolhido

Abra os olhos, aceite esse sentimento insone
Esqueça tudo isso, até seu próprio nome
Repouse sua mente, de olhos bem abertos
A estrada se ramifica e o caminho é incerto

Dormiremos juntos, mesmo separados
União pela mente e olhares abraçados
Andamos o mesmo caminho, escolhemos o mesmo lado
Mesmo quando não havia escolha, apenas o errado

Abra sua mente, aceite essa sensação sem nome
Você não precisa de explicação para sua fome
Nem para a sua sede de conhecimento puro
Feche os olhos, tateie o caminho no escuro

Acordaremos separados com os pensamentos unidos
Sobreviveremos entre os mortos e feridos
Mesmo com nosso peito aberto e atingido
Andaremos o caminho para o qual fomos escolhidos

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Sobre a dúvida

Uma coisa sobre estar no mundo e refletir sobre ele é que você começa a se importar mais com a forma como as coisas perdem o sentido e a cor do que com as coisas que nascem e crescem cheias de vida ao seu redor. Um belo dia você acorda e nada é do mesmo jeito. Nada tem cor o suficiente, brilho o suficiente, amor o suficiente. Uma coisa sobre estar e refletir no mundo, é perceber sua própria vida, mas fatalmente decair para a morte, para o irreal. Para o que pode ser que nem aconteça. Até o momento em que você acorda, levanta e se pergunta quando foi que você deixou tudo passar. Em que momento você perdeu o controle, perdeu o viço. Quando foi, qual o acontecimento da sua vida que te fez desacreditar de tudo e procurar uma sobrevida segura. Até aquele dia. O dia em que você cansa de "viver" e quer simplesmente sorrir. Quer perder as aspas, o medo, a timidez diante do mundo. Chega um dia - e tomara que chegue - em que você vai estar em um caminho que você não queria e que talvez você nem sinta que tenha escolhido, não voluntariamente. Mas você está lá, e ninguém te obrigou a estar.
Ainda assim, mesmo que você não se reconheça, esse é você.

Cada vez que acordo de manhã, demoro algum tempo para levantar. A primeira coisa que me vem à cabeça é o tempo que passou pra mim. Mais um dia, que se transforma em mês, em ano. Mais um passo, mais lento do que sonhei, mas cinza do que desejei, menos alegre do que planejei. Cada vez que acordo de manhã, demoro um tempo para levantar, porque fico procurando pela Sweetie, me perguntando quando me tornei Sour, quando as pessoas passaram a me definir tão implacavelmente e de modo tão negativo, quando eu me sinto tão dócil, indefesa e frustrada diante da vida. Cada arma que perco na luta pela felicidade.

Sempre digo, e sempre é verdade que não vale a pena ficar amargurado pelas coisas ruins da vida. Não faz sentido se definir e definir seus atos pelas coisas ruins que te aconteceram. Porque ter medo de amar? Porque ter medo de sorrir? Às vezes nós fazemos jus ao título de amargurado, bravo, nervoso e triste. Mesmo não querendo. Mesmo não sendo. As vezes nos deixamos definir por algo que não somos. Até aquele dia - que se não chegou, vai chegar.

Se for pra viver, que seja sem medo, sem aspas, sem meias-palavras. Se for para dizer que seja bem dito, sem sussurros. Se for para saltar, que seja do alto, olhando para todos ao redor. O medo vai estar lá, mas ele estaria de qualquer forma. Então você pode se aproveitar dele, como já se aproveitaram de você.

Você já se deparou com todo tipo de gente. Mesmo as ruins. Mesmo as maldosas, e até com aquela que se aproveitou da sua ingenuidade. Mas em que momento ser ingênuo se tornou algo ruim? Quando foi que nós começamos a desconfiar de todos à nossa volta? Como é para você se doar e estar de braços abertos para a vida depois de se tornar aquela pessoa amargurada, com as energias ruins e o coração pesado?
Sabe, eu prefiro ser ingênua. Ser surpresa diante da vida, se for preciso, me cobrir de incertezas. Sei que vou ter medo, sei das minhas dúvidas, sei que vai doer. Se tem uma coisa que a vida me mostrou é que chega um momento que não é mais tão fácil. E se eu estou tentando, porque preciso ser definida pelos meus erros?

segunda-feira, 9 de março de 2015

(Des)Crença

Vejo a escuridão em seu olhar por trás de cada oração
Talvez seja descrença auto-imposta, talvez medo da desilusão
Ouço a dúvida escondida em cada uma de suas juras
A sua pequena parte protegida de suas doenças e suas curas
Aquela parte menor totalmente envolta em loucura

Deixe que a escuridão tome conta pelo menos uma vez
Deixe prevalecer a insanidade, sem dúvidas ou porquês
Feche os olhos e se deixe dominar

Não crie resistência à sua própria vontade
A sua parte que lhe torna sua própria divindade
Sem mais necessidade de se ajoelhar

Chega de se curvar diante do que não lhe atinge
Você não tem nada a ganhar, mas ainda finge
Eu ouço o vazio ecoar no silêncio da sua presença
O vazio de cada palavra dita que você não pensa
Ainda há uma pequena parte protegida de suas curas e doenças

quinta-feira, 5 de março de 2015

Pouco A Pouco

Deita, deita tua alma de olhos fechados no meu colo
Aceita, aceita meu abraço, meu calor que eu te consolo
Me deixa, deixa entrar entre teus braços e pensamentos
Me cobre, cobre com tuas asas, dormiremos ao relento

Mas não sentiremos o frio nem o abandono
Nos acomodaremos um no outro e que venha o sono
Mas não precisam vir os sonhos, temos um ao outro
Isso já é razão para perda de razão, ser um pouco louco

Deita, deita teu olhar na minha boca e olha meu silêncio
Me cobre, cobre com tua pele e com teu contrassenso
Me deixa, deixa meu nome na boca como saliva entre as bochechas
Me aceita, aceita como parte do futuro, e o passado você deixa

Mas não deixa ao relento, não há motivo para abandono
Pega a efervescência do que interessa, deixa apenas o que é morno
Não precisa vir o sono, acordados temos um ao outro
Ficaremos despertos e dispersos, nos enlouquecendo pouco a pouco

segunda-feira, 2 de março de 2015

Sobre Crescer



Às vezes temos medo de mudar, e acabamos nos resumindo a criaturas covardes e insignificantes, recolhidas na penumbra, no canto do quarto escuro. Por alguns minutos eu me vi assim, numa sarjeta qualquer, tentando me convencer que se me encolhesse o bastante, morreria e renasceria para ser eu mesma outra vez. Sem notar nada, isso me fez mudar, e, por alguns minutos, eu fui aquilo que mais lutei para fugir: me vi num canto úmido, sorrindo pras baratas e criando fungos, como um rascunho velho de uma letra qualquer mal escrita.     
Então me aparece alguém e com duas frases me destrói: "Sabe do que mais? Você só precisa de alguém... Eu? Não, eu não preciso. Eu vou dizer do que preciso: preciso sair desse buraco úmido e fedorento, onde eu me enfiei por não poder ser quem sou. Ser alguém fraca. Ser uma qualquer. No fim das contas eu nunca fui nada daquilo, as pessoas é que falavam tanto que me convenceram. Ou ao menos, me convenceram a me esforçar o tempo todo para sê-lo. Mas quando você força demais alguém, ela cansa. Aí para. Esse é o ponto que eu cheguei.
 Cheguei a um ponto da minha vida onde não adianta ficar rindo e achando tudo perfeito, porque não é assim. Então, quem é mais desprezível? Alguém que sabe de muito e procura melhorar sempre, ou eu, que fico tentando convencê-lo do contrário? Quando as pessoas têm motivos pra terem defeitos ou pra serem quem são, elas não devem ser repreendidas por aquilo. Mas isso não importa mais.
Aquela menina com jeito e ar de criança, com sorriso amarelo, com açúcar e com afeto deu lugar a essa que vos fala agora. Alguém amarga e triste, que não é nada além de uma piada de mau gosto que não faz ninguém rir, que é só a sombra de um passado que não volta, ou que infelizmente volta.
Porque a dor começou há muitas primaveras. Ela não incomodava meus olhos de vidro nem me impedia de mostrar os dentes por aí. Não tinha nenhuma noção do que queria dizer. Era apenas algo incômodo. Era apenas a dor de sei-lá-o-que. Dor que doía e doía... mas que, por vezes, eu deixava de lado e dava lugar a livros e discos. Às bonecas, à correria, à uma felicidade qualquer, que nunca precisou de porquê. Mas jamais daria lugar a um eu te amo novamente. Desaprendi a amar de uma vez só, diante daquilo. Não sabia como ou por que, não sabia que ligação aquilo tinha com aquele episódio lamentável. Mas tinha. Jamais teria certeza, só sabia. E sabia, e sabia... e tinha certeza quando perdia noites e mais noites de sono, e buscava desesperada fugir do escuro e da solidão. Não imaginava o que aquilo causaria.
O desamor fazia com que aquela que eu fui se sentisse um eterno estranho no ninho, com cara de humano, mas que era apenas uma roupa, inflada com amargura e medo. Como qualquer dissonante que conhecia, procurava fazer amizades que a preenchesse e que pudessem traze-lhe o açúcar de volta. Mas não tinha. Não encontrava. Procurava e procurava, sempre mais, mas ninguém é igual a ninguém. E aquela ferida só marcava a ela. E o desamor aumentava.
Mais tarde descobriria rastros do que foi, de tudo aquilo que não lhe dói nem lhe marca e, de vez em quando dava espaço para o afeto, tinha trégua da dor de sempre. Mas sorrisos custam caro, e ela descobriria isso. Descobriria porque aquilo que dói, persegue a gente pra sempre. E foi assim que ela se sentiu. E foi assim que ela deu lugar a mim. Bem aos pouquinhos.
Ainda impressiona o quanto uma palavra, um nome, uma pessoa, um corpo, pode incitar tanto nojo, tanto asco, tanta dor, tanta tristeza, tantas lembranças. Porque eu tenho muitas coisas para lembrar, mas por muito tempo eu só sei lembrar isso. E, quando desaprendo, ou acho que desaprendi, ele vai estar lá pra me lembrar. Vai estar encostado na parede, fumando um cigarro, e sorrindo pra mim. Lembrando o início da tarde de um dia de trabalho qualquer, no qual uma criança se viu mais assustada do que jamais estará durante toda a sua vida.
Esse alguém hoje sou eu, assustada como naquele dia, encolhida no canto do quarto escuro, sentindo-me sozinha, e principalmente, sentindo-me desprotegida. Todos aqueles que diziam que estavam ali, cedo ou tarde se foram, logo depois de me lembrar de que é pedir demais que alguém esteja lá até o fim da vida. E que, dizer que gosta de alguém é na verdade gostar da imagem que se faz dela, e que estar com ela, é lembrar-se dela de longe, enquanto esse alguém passa apuros. Eles se foram e me deixaram essa lição, que eu aprendo e desaprendo cada vez que eu me deparo com essas palavras.
E aqui estou eu, aprendendo de novo que só se vive uma vez, e que, nem todo mundo paga os pecados. Aqui estou eu, me dando o direito de mandar ir à merda qualquer um que me diga que mais alguém sofre e que eu não devo me sentir assim. Aqui estou eu, desprotegida, tentando ter direito de ser fraca de fez em quando. Fraca e desprotegida. E sabe do que mais? Aqui estou eu, e só preciso de alguém.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Frutos da Casualidade

Frutos da mera casualidade
Nada mais do que simples acidentes
Tropeços em uma estrada incompleta
Lábios fechados e um destino inconsequente

Não enxergamos nem metade de uma razão
E não entendemos a graça da piada
Roubamos o fogo dos deuses quase por azar
E incendiamos nossa única morada

Destituídos de qualquer sinônimo de compreensão
Tateamos no escuro por algum caminho
Gritamos o mais alto que conseguimos
Para ouvirmos os ecos e fingirmos que não estamos sozinhos

Fechamos nossos olhos a nossa origem
E ignoramos nosso ponto de chegada
E quando não houver vencedor, só perdedores
Talvez nos arrependamos de nossa existência desastrada

Preenchemos o vazio com mais do mesmo
Fingindo que o efêmero nos satisfaz
Sangramos por coisas menores que nada
E bombardeamos nossa própria paz

Piores a cada dia como um fruto que apodrece
Bebemos do nosso próprio veneno a cada dia que amanhece
O universo que não é nosso sobreviverá a nós
Poderemos dizer o mesmo com nossa voz?

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Palavras Certas



Ela estava lá. De pé, os olhos enormes vidrados nele. Aquele olhar de sempre. Olhar de quem te acalenta e te dá esperança, enquanto ambos sabem que aquilo não foi feito pra durar.
Ele não a odiava. Nunca a odiou, e esse era o grande problema. Mesmo quando ela distorcia tudo, fazia tudo virar-se contra ele, tornava toda pequena conversa em um grande problema, uma grande injustiça, mesmo com ela achando que tudo era sobre ela mesma, ele não a odiava. Sentia que estava “pagando o preço” por ser tolo. “Um homem feito”, ele pensava, que se deixara enganar. O que ganhara? Um olhar vidrado – não vazio, embora uma parte dele preferia que fosse – que significava que ela poderia enganá-lo sobre qualquer coisa, como provavelmente já havia feito muitas vezes a essa altura.
Havia mesmo era de ser justo: Ela nunca o enganou, ao menos não sozinha. Ele também se enganou, porque sabia. Estava escrito nos grandes olhos dela, aqueles olhos que diziam “por favor, não é bem assim”, o olhar que ele amava, que era realmente o melhor que ela tinha. Como que para se defender de si mesmo, repetia apenas que a culpa era dela. Que não sabia mais quem ela era, o que estava fazendo. Era como cair em si, a mulher que ele amou, que quis bem, que cuidou dele todo o tempo, exercendo seu direito de dizer “nunca te prometi nada”, mesmo tendo simplesmente ignorado durante todo o tempo tudo que ele sentiu, tudo o que ele fez. Por ela. Por eles.
Ele a amava. Deus, como a amava! Nada importava, nem mesmo viver uma mentira com consentimento mútuo. Era o amor, sabe? Não tinha nada demais daquilo, ele achava, ela o fazia bem, ele fazia tudo por ela, então estavam quites. Não tanto, ao que parecia no momento. Era a encruzilhada, as decisões que ninguém quer tomar.
Tudo que ele fazia ali, jogado, olhando-a e sentindo o olhar dela queimar (mesmo que essa não fosse a intenção), era lembrar do primeiro dia. Não o dia em que se conheceram, o OUTRO primeiro dia. O dia do sim. O dia que, agora ele percebia, ela tinha dito que poderiam ser felizes juntos então “porque não tentar, não é?”, mas na verdade o sorriso dela era amarelo demais, o olhar dela era tímido demais para ela ter realmente acreditado que poderiam ser felizes juntos. Foi a primeira mentira dela olhando nos seus olhos, e também foi a primeira frase da relação dos dois.

Ele chamava aquilo de “dar uma chance”. Era um nome divertido, ela achava. “Dar uma chance”. Enquanto ela sabia que não havia nada para dar a ele. Mas ela gostava dele, realmente GOSTAVA. O queria bem, queria proteger aquele sentimento que ela não sabia qual era. Sabia que não o amava, sabia que ele não a atraía. Mas não sabia o que diabos acontecia ali. Deu aquele sorriso de quando tinha cinco anos e ganhou uma camisa da Barbie, um sorriso torto, como se ela mesma tivesse desenhado com uma caneta vermelha. E também tinha aquele olhar.
Embora ela achasse que ele discordaria disso, devia dizer a verdade: seu olhar não mentia nunca. Ela tinha palavras ríspidas para ele, mas seus olhos eram dóceis. Dava esperanças, mas seu olhar era distante. Dizia “Também te amo”, mas seu olhar era vazio. Fazia questão de dizer-lhe tudo isso olhando-o profundamente. Era a maneira dela de dizer algo que não tinha coragem. Dizer e não dizer. Para ela era absolutamente claro, e só podia torcer para que não fosse diferente com ele. E agora tinha aquilo. “AQUILO”, na falta de uma palavra melhor. Não sabia como lidar, porque saberia nomear. Além do que, isso não importa. O que importa é que ela estava lá, ELE estava lá.
Era como se estivesse encarando o monstro de infância embaixo da cama. Nada de bom sairia de lá, e ela não esperava nada de bom. Esperava ter coragem ao menos, porque era aquilo que todos achavam. Sempre, o tempo todo. Sim, havia se esquivado de tudo durante toda a vida, havia dito “não” e “sim” para pessoas que não esperavam e não se entusiasmavam com aquilo. Era assim que havia crescido, e achava que era por isso que ele havia se apaixonado. E agora ele estava ali, esperando nada menos que a palavra certa, esperando ouvir ao invés de ver a resposta. Tudo que ela sabia sobre aquela situação era que ele merecia isso.
Mas parecia um vício. Sua boca não conseguia dizer nada desagradável a ele, e há muito tempo utilizava seu olhar para consertar tudo isso. “Mas ele não sabia de nada disso”, foi o que ela pensou. E de repente sentiu que era tudo que ele achava dela. Tudo que ele sentia sobre ela era verdade, mesmo que ela não quisesse.
Ele havia MESMO dedicado-se à ela. As pessoas vêem dedicação de um modo diferente, sempre. “Elas não entendem”, era o termo que usava. Dedicação. Nada sobre abdicação, esforço. Era sobre investimento. Investir seu tempo e seu amor em algo, dar um uso prático àquilo que se sente e que se tem guardado. Era isso que ela sentia que ele fazia, e o que ela fazia era se deixar levar. Não era assim que as coisas funcionavam, agora ela sabia. Nunca havia pensado nas coisas dessa forma, mas a verdade é que havia MENTIDO todo esse tempo. Uma vez alguém lhe disse isso, que ela mentia, e ela simplesmente ponderou e decidiu que, seja lá como fosse, só dizia respeito a ela, então estava tudo ok. Mas não estava. Quando alguém se DEDICA à você, você não está só. Seu coração, seus problemas, nada é mais apenas sobre você. E agora pagava o preço por “se deixar levar”.
Ele estava lá, aquele olhar decepcionado que ela odiava, e sempre odiou. Esperando que no final tudo desse certo, porque a vida era assim, afinal de contas, porque no final tudo dava certo para ela. As coisas que ela queria, os doces que ela gostava, as palavras que ouvia. Não apenas por mérito, mas porque alguém havia se DEDICADO a ela. E aquele era o monstro dela. Aquele amor que ela julgava, realmente julgava que poderia nascer ali, e que nunca nasceu. Aquela culpa por não poder dizer, apenas abrir a boca e falar que não havia amor e nunca houve. Que ela não se dedicava. Mas se importava.

Sentado na cadeira, olhando-a. Dentro daquele apartamento pequeno, cujas as paredes pareciam se fechar, como naquele filme que viam juntos no cinema decadente. Ela também não parecia bem, era o que ele sentia, mas não era como se ele também estivesse muito feliz. Era ela, a mulher DELE, aquela que ele cuidava como se cuida de um filhotinho. Ela sempre pareceu um pouco assim, para ele. E por isso ele a cercava, cuidava, a fazia – cada dia um pouco mais – ser o que ela acabou tornando-se. Ou, ao menos, fazia a parte dele.
Ela estava lá, recebendo aquele olhar fixo. Queria simplesmente desviar o olhar e virar o jogo como sempre, fazendo pouco caso daquilo, continuando sua vida de comercial de margarina, mas aquilo não era mais possível. Poderia cortar o sentimento de cada respiração com uma faca muito afiada. Estava muito apertado ali, e sentia que talvez estivesse ficando pálida, como se fica em locais muito apertados e cheios de gente. De tudo que se passava por ela, uma coisa destacava-se. Tudo que ele fez, tudo que ela fez. Não era uma comparação, não era uma oportunidade de culpá-lo ou de culpá-la. Ela entendia.
Ele entendia.
Aquilo era sobre o aprendizado. O que eles levaram tanto tempo para aprender e para assumir. Não adianta ser bom, não adianta fazer o bem. Não adianta fazer a outra pessoa feliz. Tudo que se faz, tudo que se diz, tem vir do lugar certo.
Tem que ser feito pelo motivo certo.

E então só poderia fazer uma coisa: eles se entreolhavam por vários minutos, já. E ela tinha sido a forte o tempo todo. A que acalmava e fazia o que era preciso para seguir em frente. Havia sido covarde, segundo o julgamento dele, e também segundo o próprio julgamento. Deveria ser corajosa em algum momento, e aquela era a última chance. Você pode jogar esperar pela morte ou pode seguir fazendo algo por si. E ela fazia algo por alguém pelo qual ela não amava, era o que havia de ser feito naquele momento. Depois de tudo, sentia que devia isso a ele. Então, sem dizer uma palavra, levantou-se da cadeira que ficava em frente à dele. Pôs tudo no lugar, como ele sempre pedia. Foi até o quarto, batendo com os pés, apesar das reclamações do vizinho de baixo. Olhava para baixo, como que inconsolada, apenas porque não havia outro modo de proceder. Permitia-se isso, pois sabia que ele havia ficado na sala, de costas para ela. Então seguia, seu salto alto de grife batucando no chão, fitando a mancha de tinta escura que o vinho havia deixado na semana anterior, e pelo qual ela nutria uma profunda raiva e um enorme incômodo. Sentia que era apenas uma mancha, mas usou aquela raiva a seu favor, e foi essa força que veio dela que a ajudou a fazer as malas. E enquanto aquela raiva inflava dentro dela, sua cabeça foi erguendo-se como um balão que se enche de gás. O corpo foi ficando ereto enquanto colocava a mala de rodinhas no chão. Foi até a porta. Voltou. Olhou o espelho que tantas vezes a havia visto levantar nua depois de uma boa noite com o marido. Ocorreu-lhe algo que de repente parecia importantíssimo. Retocou o batom, como se precisasse dele para ficar de pé, como se ele a ALIMENTASSE, e saiu. Cabeça erguida, ignorando a existência dele por completo. Friamente. E sabia que aquilo alimentaria tudo que ele achava dela, mas sabia que, se o olhasse, seria mais difícil seguir em frente.
Apanhou o elevador, apertou o botão até acender-se uma luz verde, que indicava que o elevador estava entrando em movimento. Um enjôo foi crescendo de repente, um bolo na garganta que parecia apenas crescer, e sabia que, se respirasse, a pizza que comeu no jantar viria cumprimentá-la. Mas não foi assim que aconteceu. Ao invés disso, as portas se abriram, ela saiu, cabeça erguida, olhar profundo de quem tem algo a dizer para melhorar o mundo. Entrou no carro. Sentou no banco e o carro não ligava. De repente, aquilo era a pior coisa que existia, e ela chorava como se aquilo significava a morte. Simples assim, nada de lágrimas vindo aos poucos. Apenas chorava. Chorava porque o carro não ligava, porque a dieta não funcionava, não conseguiria chegar ao destino. Chorava porque precisava simplesmente sair dali. Mas chorava, principalmente, porque o AMAVA, e porque havia decidido sozinha e tomado a iniciativa de deixar o homem que ela AMAVA – e repetir aquilo fazia qualquer dor parecer brincadeira – para trás, porque não sabia mentir, porque não sabia dizer a verdade. Porque não sabia como agir, e agora não dava para simplesmente subir e dizer “olha, foi um engano, me perdoe e vamos para a cama, querido”.
E ele continuou sentado. Olhando a parede, parecendo olhar ATRAVÉS dela, vendo algo de extrema importância. Só queria que ela voltasse. Só queria vê-la de novo, tirar-lhe o vestido, bagunçar-lhe o cabelo e seguir em frente. “Seria capaz de passar por cima disso de novo”, era o que buscava manter em mente. “Fazer essa dança novamente”, era a forma DELA dizer. Ouviu-se repetir alto um “Dançar de novo”. Levantou, olhou pela sacada. O carro ainda estava lá, a mala do lado de fora, a porta fechada, os vidros abertos. Ela estava lá dentro. Não parecia fácil para ela, e ele imaginava que aquilo deveria significar algo, mas sabia, no fundo SABIA que não podia descer lá e dizer “Não seja boba, vamos, venha comigo” e dar-lhe a mão para que voltassem para casa.
Aquele era o fim, e ele sabia.
Os dois sabiam
Olhavam-se à distância, sentindo apenas que fizeram o que era certo pelos motivos errados. E aquilo havia sido fatal.


Cada vez mais,
SweetieSour .