terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Aquela Lacuna Reservada ao Amor

Havia acordado do melhor sonho da minha vida. Abri os olhos, estava deitado numa cama macia, grande – como a minha própria cama –, mas não estava em casa.

Em meio aos lençóis alaranjados pela forte luz do sol do fim de tarde, meus olhos tateavam uma nova realidade, uma pista que me fizesse saber onde eu estava e porque estava ali. Foram longos segundos, até me lembrar que não havia sonhado. Estava num lugar lindo, com um sentimento de que era exatamente onde deveria estar. Havia estado com aquela mulher que devia ser a mais linda que a qual eu já estive. Embora ela não mais estivesse lá, eu sabia que era real. Haviam se passado apenas algumas horas, e aquele resquício que ela deixou de amor terno que preenche o coração de quem faz sexo com quem se ama ainda estava lá. Era impossível ignorá-lo.

Lutando contra aquele sono que eu sempre tenho quando acabo de acordar, ignorando o automático “só mais cinco minutinhos” que estava na minha mente, eu levantei. Era estranho acordar sozinho, estranho a porta estar fechada. Mas, e daí? Percebi que a minha camisa havia desaparecido, então entrei na bermuda com a qual havia chegado, e saí.

Ao pôr meus pés na sala, me deparei com ela. Deitada no sofá, espremida (embora houvesse espaço) em um pequeno canto, tão encolhida que poderia ser coberta por uma toalha. Ela vestia uma camisa – a minha camisa preferida, e isso me deu ainda mais certeza de que era tudo real, que a mulher que eu desejara, que havia cuidado de mim nos piores momentos, rido comigo nos melhores; a mulher que havia se tornado a alternativa lógica a se procurar nos bons momentos e nos ruins, a melhor mulher que alguém poderia querer, havia escolhido a mim – e aquela samba-canção do Star Wars (que ela me contou que havia comprado pra dormir, mas que, na realidade, eu sabia que ela queria mesmo era sair com ela na rua).



(Se há algo a saber sobre ela, é o seguinte: ela me ama. Ela não cansava de me dizer isso, embora não o fizesse mais porque sabia que eu não a amava (que tonto que eu sou!). A maioria das pessoas simplesmente esconderia algo assim quando soubesse que não era correspondida. Ela me disse que não estava fazendo nada de errado e que o amor dela não dependia do meu. Que preferia que eu a amasse também, mas que simplesmente não conseguia evitar o que sentia, e decidira simplesmente seguir o curso do próprio coração.
Nos sentíamos atraídos um pelo outro. Por incrível que possa parecer, eu, um cara longe de ser bonito e mais esquisito do que de costume, sem atrativo físico algum, havia atraído uma mulher como ela, que reunia tudo que qualquer pessoa, inclusive você, já quis em alguém. E ela era uma daquelas mulheres. Era linda e nada conseguia fazê-la deixar de ser. Uma garota comum, com as “gordurinhas” comuns, sexy as 24h do dia, sem esforço algum)



E ali, deitada à minha frente, com a minha camisa preferida, uma samba-canção, os cabelos compridos jogados pelo sofá, estava ela. Não na cama, dormindo abraçada a mim, com os seios nus e o rosto repousado no meu corpo. Estava encolhida no sofá, completamente vestida, e aquilo a tornava ainda mais linda. A havia visto totalmente nua, e era a coisa mais linda que já havia visto. Jamais conseguiria explicar como me senti durante aquelas horas juntos. Ela fazia tudo ao redor dela sumir. Parecer banal, desnecessário. Embora insegura, como se fosse sua primeira vez, as mãos pequenas tentando cobrir o próprio corpo, os olhos que não conseguiam repousar em lugar nenhum, mas que também não saíam do chão, ninguém faria idéia de como ela era.

Talvez a maioria de vocês achasse estranho vê-la deitada, vestida, no local mais desconfortável que poderia estar. Mas eu simplesmente não conseguia pensar nisso, porque, mesmo com toda a beleza que seu corpo nu tinha, era indubitável a necessidade de abraçá-la e cuidar dela que me ocupava naquele momento. Então eu deitei ali, naquele sofá espaçoso, e dormi junto dela. Sentindo seu cheiro e ouvindo sua respiração.

Quando acordei, ela já havia acordado. Com seus grandes olhos escuros abertos, fixados no teto da sala, sorria sem parar como se estivesse em transe. Acariciei e beijei seu rosto, e continuei abraçado a ela. Ela me beijou, e aquela estranheza que eu deveria ter sentido antes, me acometeu, como uma grande onda num mar calmo. E, calado pelo segundo mais longo da minha vida, eu ponderei, e acabei perguntando porque ela havia se vestido e saído.

Com uma voz macia e dócil, baixa e constrangida, ela me perguntou:

“Mas não era aqui que eu deveria estar?”

Eu não entendia nada. Disse a ela o quanto ela era adorável e que podia ficar olhando seu corpo por horas, sem me cansar. Ela me deu seu olhar mais calmo, sentou-se e abaixou os olhos. Esperou que pudesse acontecer algo que a livrasse de falar sobre aquilo, mas, enfim, simplesmente me explicou:

“Eu já me apaixonei algumas vezes, mas só estive com dois homens antes de você. Sabia que não era assim com nenhuma das minhas amigas, mas, claramente eu não sou como as minhas amigas. Minha primeira vez parecia ser como a da maioria das garotas: eu estava tímida e com medo. Ele foi gentil comigo e o desejo anterior parecia não ter fim. Mas logo após a nossa primeira vez, ainda com a mesma insegurança do início, e ainda com as luzes apagadas, ele me deu uma camisa e me pediu pra vestí-la. Disse que era melhor eu me levantar. Que eu iria perder a hora, que precisava ir. Como se ele simplesmente não quisesse, a nenhum custo, que eu ficasse ali. E assim foi. Dali pra frente, foram assim todas as vezes: sempre no escuro, sempre tendo que me vestir e ir embora.

E assim foi também com o segundo. O sexo era melhor, mesmo que eu, novamente, não conseguisse ver seu rosto. Porque estava escuro. E, novamente, havia sempre uma roupa a vestir (qualquer uma servia) e um compromisso que eu precisava cumprir. Simplesmente me vestia e ia embora da sua vista. Me aninhava no sofá ou pedia um táxi. Ou pegava o carro e ia embora. Com o tempo, eu simplesmente perdi a esperança de que ele me pedisse pra ficar ou dissesse que queria admirar meu corpo. Como é com as minhas amigas. Porque, claramente, eu não sou como as minhas amigas. Com o tempo, você percebe que as pessoas são diferentes, e que não podem ter o melhor de tudo. Você simplesmente luta pelo melhor que pode ter e aceita que não há como forçar sentimento em ninguém. As pessoas simplesmente não serão assim pra mim. Eu tenho uma casa confortável, três cachorros lindos e a melhor vista pra praia. Tenho você, que eu amo (sei que você não se sente bem quando eu digo isso, mas é a verdade), e tudo tem suas limitações. Até o sexo. E certas coisas não mudam.

Mas agora eu estava em casa. O que mais poderia fazer? Não havia para onde ir, então pensei que se talvez eu fechasse a porta, pudesse fingir que não estava ali. Por vias das dúvidas, eu me vesti (e me desculpe por usar a sua camisa), porque tive medo de você me encontrar. No fim das contas, foi o que aconteceu. Ao menos havia me vestido. Se eu posso contar um segredo, é que a pior parte é quando alguém te pede pra se vestir. É o que eu acho. Não me incomodo, é assim que as coisas são pra mim, mas ter alguém pra dizer isso... é o fim”.

E continuava olhando pra baixo, como se tivesse feito algo de errado. Me recusei a acreditar no que ela havia dito. Com certeza, ela era melhor do que as amigas dela. Com certeza havia algo de errado com esses dois. Mesmo contando-lhe tudo e procurando ouví-la sempre, eu não fazia idéia de como havia sido para ela. Nunca conseguiria supor que haviam a tratado desse modo, que nunca haviam feito ela saber como ela era linda, como seu sorriso iluminava qualquer lugar e como o sexo era intenso e divertido. Ninguém nunca a havia feito entender de uma vez por todas que ela merecia o melhor. E foi o que eu disse. Que não fazia idéia do que lhe havia acontecido, que ela era linda, que merecia o melhor.

Ela, com aquele sorriso amarelo, limitou-se a concordar, me deu um beijo e saiu sorrindo, se esforçando para fazer parecer que aquela conversa não era nada e que estava tudo bem. Realmente, ela parecia estar conformada com toda aquela situação, mas eu não estava. Então levantei e fui atrás dela, toquei seu rosto e disse, olhando em seus olhos, que ela era incrível e linda, que o sexo era maravilhoso. E que...

“...que algum dia alguém me fará perceber que eu mereço apenas o melhor. Tá certo”, ela veio completando a frase. Exatamente o que eu ia dizer. E foi nesse momento que eu percebi. Percebi que não havia sido o primeiro a dizer isso a ela, e que provavelmente não serei o último. E fiquei ali, fitando o vazio, automaticamente lhe entregando o saleiro e o pimenteiro enquanto ela cozinhava algo e dava a tudo aquilo um ar extremamente banal. Percebi que ela podia achar que eu era como os outros, e imediatamente me enojei dessa idéia. E disse, disse a ela que tudo que eles haviam feito estava errado, que eu não era como eles. Ela deu um sorriso de “óbvio que não é, não seja tonto”, e me respondeu:

“Você é completamente diferente deles. Você cuidou de mim e me fez eu me sentir especial. Olhou nos meus olhos, sem me esconder do sol do dia. Me disse que eu era perfeita e me fez sorrir, e eu nunca havia sorrido em momentos como aquele. Se esforçou por mim e se importou comigo. E eu era a única ali. Como é com a maioria das garotas.

Mas você não me ama, e eu sei disso. Sei que não sou perfeita, que não sou a mais bonita, que não sou a única e não serei a última. Que não serei eu quem fará todas as outras sumirem. Sei que sou boa: uma boa amiga, uma boa companheira. Talvez você até ache que eu encontrarei alguém me fará acreditar isso. Mas essa pessoa não existe. É como jogar basquete, a bola está com você e o seu papel é passa-la ao próximo. E essa bola são todas essas palavras. Até que elas serão jogadas em uma cesta. Sei que você quer que eu me sinta bem, e eu agradeço por isso. É muito mais do que qualquer um já fez por mim...”

“Theodora, eu não sou como eles”.

“Entenda bem, eles não são monstros. Não foram caras que me trataram mal. Eles simplesmente foram sinceros e fizeram o melhor que puderam pra que eu me sentisse bem. Eu era tola e não sabia. E eles, fazendo o seu melhor, me deixaram o espaço que eu precisava pra entender tudo isso.

Você também não é um monstro, você é o melhor. Quero que você saiba disso. Você foi o melhor de todos. E eu te amo, isso foi e é apenas com você. Mas você precisa saber que eu não sou como as outras garotas, e está tudo bem. Mesmo que eu não precise me vestir ou que eu possa dormir abraçada e segura (e estar ali, abraçada e segura, foi a melhor sensação que eu já tive), você continuará sentindo o mesmo, e eu prometo que está tudo bem, que não tenho e nem nunca tive esperança de que seria diferente. Apenas estou, já que você faz questão de falar sobre isso, sendo sincera e estabelecendo os limites pra que você não precise se esforçar pra me fazer crer no que quer que seja. Eu já sei. Não diminui o quanto você me fez feliz. Não era isso que tinha em mente, e não é isso que eu espero. Espero que possamos simplesmente ficar juntos, sem termos que responder perguntas que nenhum de nós quer responder. E você já fez muito melhor que isso, em algumas horas. Então vamos esquecer isso, tá? ”

Me deu um beijo rápido e voltou para a comida. Estava feliz cozinhando, estava feliz com aquilo tudo, estava feliz comigo. Constatei que ela realmente acreditava naquilo, e, pior, constatei que eu era exatamente como eles. Não a amava, embora sentisse um afeto e um atração enormes por ela. A queria bem e queria que ela tivesse o melhor. Sabia que eu não daria isso a ela, sabia que meu coração não estava disposto a dar a ela o amor que ela merecia. E soube, naquele momento, como a vida era injusta. Soube que ela nunca saberia o quanto podia ser especial para alguém, mesmo que esse alguém ainda não tivesse aparecido. E soube que esse alguém não apareceria, e que ela seria alguém que merece algo que não terá.


Hoje, anos depois, eu vejo. Vejo que ela, em seus 29 anos de uma sabedoria quase élfica, me fez entender que a vida era uma droga, que algumas pessoas simplesmente têm algumas coisas, e outras não. E que não adianta dizer que é idiotice e que não existe isso. Passar essa frase de boca em boca não vai fazer diferença se você não for esse cara. E eu não sou, e não sei se alguém será (e essa é a pior verdade que eu já precisei admitir), então o que eu tenho para ela é o esforço em dar-lhe todo o afeto possível, cuidar dela e fazê-la sentir segura, feliz e satisfeita. E esses foram os quatro dias mais felizes que eu poderia ter tido ao lado dela. A desejo até hoje e nunca deixarei de deseja-la. Tivemos e ainda teremos muitos dias como esse, ainda sinto o seu amor e o seu companheirismo, e ainda tenho o mesmo afeto e o mesmo companheirismo para dar-lhe. Sei que ela teve outros depois de mim e que era o mesmo com todos. Eles não a amavam. Tinham afeto, e alguns deles até paixão, mas não a amavam. Talvez dissessem o que eu a disse, talvez apenas se limitassem a fazê-la o mais feliz que eles pudessem. Exatamente como eu fiz. Mesmo com aquela lacuna reservada ao amor.