domingo, 31 de julho de 2016

Era uma vez, uma mulher


Ela pode ter qualquer nome, então vamos chamá-la de Maristela. Maristela era uma mulher, Uma mulher que, como muitas, odiava a si. Odiava não pelos seus defeitos, mas por acreditar nas verdades da vida, ao invés dos risinhos e mentirinhas de cada dia, dos elogios maravilhosos das pessoas que a cuidavam, e que ela sabia que era por algum motivo, mas não saberia qual até que acontecesse. E isso, ela também odiava. Poderia enxergar um alfinete perdido na cama, mas as pessoas continuavam, e continuariam a enganando. Porque é assim, a vida ainda irá proporciona-la um futuro maravilhoso, cercado de viagens e amizades, amores superficiais e talvez até dinheiro se, por algum milagre do destino, um lapso a deixe ser esperta.
Vamos confessar aqui: Maristela era sim meio doida. Maristela cometia acidentes não tão acidentais; Maristela escondia marcas de acidentes como esse com marcas de sol (sim, dá pra fazer, se for superficial ou no meio de alguma das várias imperfeições); e, não dá pra negar que Maristela era mesmo uma tormenta.
Por dentro. Por fora, Maristela era a engraçada, a que relevava e levava todos os problemas de modo superficial. Ela perseguia vultos o tempo todo, se escondendo dos espelhos, olhando para o vazio na direção dos olhos e se dirigindo sempre ao nada. Era “avoada”, “esquecida”. Maristela era perdida emocionalmente dentro do corpo de alguém que, dificilmente, se encontraria espacialmente. Maristela procurava uma vida comum, onde as pessoas fazem faculdade, namoram, fazem sexo, tem hobbies, tem planos e acreditam em si. Maristela se procurava nesse mundo e não estava lá. Era engano em cima de engano.
Maristela fez boa parte do que se espera de uma mulher. Ela terminou a faculdade e se sentiu perdida, teve um namorado e chorou por ele. Depois teve outros, mas, por eles, ela não chorou. Maristela se odiava desde o início. Ela tinha a ousadia de saber, de se reconhecer, com sua pequinês num mundo grande. Ela odiava a si, odiava saber sobre si mesma, odiava estragar a boa vida dos seus amigos. Odiava sua mente e, principalmente, odiava seu corpo, desde que teve ciência dele. Maristela foi a menina que se forçou e se tornou mulher. Que se forçou da primeira vez, porque achava que era assim que precisava ser, já estava na hora. Que, como toda garota, em seus momentos de normalidade, quis tentar na segunda, e foi bom. Bom, mas não perfeito, como as pessoas dizem. Porque os homens transavam consigo mesmos. Porque ela não era, e em momentos como esse, não há como esconder. Porque, às vezes, era bom, a tempo dela ter esperanças de que a próxima será melhor. E ela quis e quis novamente. As humilhações contra ela, seu corpo, sua forma e seu jeito foram seguindo. Aquele “devia ao menos ser boa de cama”, “mas as roupas enganam mesmo”, “você não tem vergonha de ter o corpo desse jeito?” a fizeram forte, e Maristela foi reforçando a sua verdade na fala deles. Aprendeu a disfarçar a cara de choro, a erguer a cabeça e a ler o olhar de “é melhor ir agora” antes que algo mais seja dito e ela não consiga. Maristela aprendeu quem era de um modo inesquecível. Ela desistiu de tudo, mesmo sendo uma jovem mulher, mesmo aos 26, mesmo com seus desejos de mulher sexualmente ativa.
Mas não era só sobre sexo, sobre correr para um lugar seguro pra chorar, humilhada e contorcida, com tanta massa corpórea por centímetro quadrado que talvez ela sumisse mesmo. Era sobre quem ela era. Sempre que pensava nisso, ela não ficava triste. Com o tempo, ela nem se importava. A vida é o que é. Ela se odiava por ser, por ter se permitido estar num lugar onde ela saberia que, cedo ou tarde, ela teria que mostrar o rosto, e que não seria bom. Então, ela estava quase se partindo, quase se esvaindo, quando resolveu que, já que tinha que ficar, precisava ser prática. Olhou para si e disse: “ok, Maristela, você está aí e não pode mais negar. Vai ser humilhada sim, e vai seguir sabendo quem é, mas não está funcionando. Precisa ser melhor, se esconder melhor. Você precisa se esconder atrás de quem dá certo. Vamos criar um nome novo, um jeito novo e tudo mais que precisar”. Então, não podia ser diferente, e veio uma nova “mulher”. Já que ela precisa de um nome, vamos chamá-la de Nise. Nise está aprendendo a existir. Ela é tudo o que precisa ser, e seu único parâmetro é não ser Maristela. Nise é legal, é forte e não leva desaforo pra casa. Acham que a Nise é esperta, inteligente, capaz e todas essas coisas que as pessoas acham umas das outras ou que mentem umas pras outras. Nise se meteu com trabalhos que exigiam mais reflexão do que ela podia suportar sem trazer Maristela à tona, e isso era um problema. Passado algum tempo, Nise incorreu na falha primordial de ter seus próprios sonhos. “Então isso é que são amigos”, ela pensou. E sentiu, pela primeira vez, o sabor da mentira. E era inebriante, ao menos até o momento da ressaca. Sempre que se enchia de si, doía no dia seguinte. Era um momento cor de rosa e um momento meio cinza. As coisas mudavam um bocado, e era demais pra ela. Era maravilhoso ser a Nise, mas também era mentira, e ela nunca devia ter se permitido daquela forma. Aprendeu a não permitir que ninguém se sobreponha a ninguém, isso era ser a Nise. Mas, de algum modo, aquilo não era aplicável a ela. Ela sabia que a Nise era uma fantasia com limites. Sabia que a Nise era um disfarce bem elaborado, que as pessoas simplesmente percebem isso. Sabia que continuariam falando tudo aquilo e Fazendo tudo aquilo, independente do rosto que ela tivesse. Sabia que pessoas maravilhosas eram pessoas maravilhosas, mas ninguém é perfeito, e alguns dizem o que pensam, outros, não.
Mas veja bem, não foi de um todo perdido, a Nise ensinou à Maristela a mentir melhor, a se esconder com maestria e a evitar a humilhação que ela sabia que sempre vinha. A Nise foi um valioso aprendizado que a colocou pra frente e a cercou das melhores pessoas, inocentes pessoas que jamais saberiam, se não ultrapassassem um certo limite. Mas havia um problema. A Nise ousou acreditar.
A Nise se pôs em um lugar que tinha tudo para ser diferente, um novo começo, sem as mesmas necessidades de perceber os olhares de expulsão. Mas Nise era só um disfarce. Uma roupa de adamantium muito bem elaborada. Dentro dela, estava a Maristela. E ela foi junto.
Agora, elas estão juntas, tendo que explicar para os que acreditaram nela que não deveriam ter feito isso, planejando mil formas de dizer que não, desculpe mas aquela lá não existe, podem até me dar pontapés agora. Agora a Nise atingiu seu prazo de validade, ela está evaporando diante dos olhos de Maristela, que agora disfarça bem melhor.
Vamos ver se disfarça bem o suficiente para não constranger.

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