segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Palavras Certas



Ela estava lá. De pé, os olhos enormes vidrados nele. Aquele olhar de sempre. Olhar de quem te acalenta e te dá esperança, enquanto ambos sabem que aquilo não foi feito pra durar.
Ele não a odiava. Nunca a odiou, e esse era o grande problema. Mesmo quando ela distorcia tudo, fazia tudo virar-se contra ele, tornava toda pequena conversa em um grande problema, uma grande injustiça, mesmo com ela achando que tudo era sobre ela mesma, ele não a odiava. Sentia que estava “pagando o preço” por ser tolo. “Um homem feito”, ele pensava, que se deixara enganar. O que ganhara? Um olhar vidrado – não vazio, embora uma parte dele preferia que fosse – que significava que ela poderia enganá-lo sobre qualquer coisa, como provavelmente já havia feito muitas vezes a essa altura.
Havia mesmo era de ser justo: Ela nunca o enganou, ao menos não sozinha. Ele também se enganou, porque sabia. Estava escrito nos grandes olhos dela, aqueles olhos que diziam “por favor, não é bem assim”, o olhar que ele amava, que era realmente o melhor que ela tinha. Como que para se defender de si mesmo, repetia apenas que a culpa era dela. Que não sabia mais quem ela era, o que estava fazendo. Era como cair em si, a mulher que ele amou, que quis bem, que cuidou dele todo o tempo, exercendo seu direito de dizer “nunca te prometi nada”, mesmo tendo simplesmente ignorado durante todo o tempo tudo que ele sentiu, tudo o que ele fez. Por ela. Por eles.
Ele a amava. Deus, como a amava! Nada importava, nem mesmo viver uma mentira com consentimento mútuo. Era o amor, sabe? Não tinha nada demais daquilo, ele achava, ela o fazia bem, ele fazia tudo por ela, então estavam quites. Não tanto, ao que parecia no momento. Era a encruzilhada, as decisões que ninguém quer tomar.
Tudo que ele fazia ali, jogado, olhando-a e sentindo o olhar dela queimar (mesmo que essa não fosse a intenção), era lembrar do primeiro dia. Não o dia em que se conheceram, o OUTRO primeiro dia. O dia do sim. O dia que, agora ele percebia, ela tinha dito que poderiam ser felizes juntos então “porque não tentar, não é?”, mas na verdade o sorriso dela era amarelo demais, o olhar dela era tímido demais para ela ter realmente acreditado que poderiam ser felizes juntos. Foi a primeira mentira dela olhando nos seus olhos, e também foi a primeira frase da relação dos dois.

Ele chamava aquilo de “dar uma chance”. Era um nome divertido, ela achava. “Dar uma chance”. Enquanto ela sabia que não havia nada para dar a ele. Mas ela gostava dele, realmente GOSTAVA. O queria bem, queria proteger aquele sentimento que ela não sabia qual era. Sabia que não o amava, sabia que ele não a atraía. Mas não sabia o que diabos acontecia ali. Deu aquele sorriso de quando tinha cinco anos e ganhou uma camisa da Barbie, um sorriso torto, como se ela mesma tivesse desenhado com uma caneta vermelha. E também tinha aquele olhar.
Embora ela achasse que ele discordaria disso, devia dizer a verdade: seu olhar não mentia nunca. Ela tinha palavras ríspidas para ele, mas seus olhos eram dóceis. Dava esperanças, mas seu olhar era distante. Dizia “Também te amo”, mas seu olhar era vazio. Fazia questão de dizer-lhe tudo isso olhando-o profundamente. Era a maneira dela de dizer algo que não tinha coragem. Dizer e não dizer. Para ela era absolutamente claro, e só podia torcer para que não fosse diferente com ele. E agora tinha aquilo. “AQUILO”, na falta de uma palavra melhor. Não sabia como lidar, porque saberia nomear. Além do que, isso não importa. O que importa é que ela estava lá, ELE estava lá.
Era como se estivesse encarando o monstro de infância embaixo da cama. Nada de bom sairia de lá, e ela não esperava nada de bom. Esperava ter coragem ao menos, porque era aquilo que todos achavam. Sempre, o tempo todo. Sim, havia se esquivado de tudo durante toda a vida, havia dito “não” e “sim” para pessoas que não esperavam e não se entusiasmavam com aquilo. Era assim que havia crescido, e achava que era por isso que ele havia se apaixonado. E agora ele estava ali, esperando nada menos que a palavra certa, esperando ouvir ao invés de ver a resposta. Tudo que ela sabia sobre aquela situação era que ele merecia isso.
Mas parecia um vício. Sua boca não conseguia dizer nada desagradável a ele, e há muito tempo utilizava seu olhar para consertar tudo isso. “Mas ele não sabia de nada disso”, foi o que ela pensou. E de repente sentiu que era tudo que ele achava dela. Tudo que ele sentia sobre ela era verdade, mesmo que ela não quisesse.
Ele havia MESMO dedicado-se à ela. As pessoas vêem dedicação de um modo diferente, sempre. “Elas não entendem”, era o termo que usava. Dedicação. Nada sobre abdicação, esforço. Era sobre investimento. Investir seu tempo e seu amor em algo, dar um uso prático àquilo que se sente e que se tem guardado. Era isso que ela sentia que ele fazia, e o que ela fazia era se deixar levar. Não era assim que as coisas funcionavam, agora ela sabia. Nunca havia pensado nas coisas dessa forma, mas a verdade é que havia MENTIDO todo esse tempo. Uma vez alguém lhe disse isso, que ela mentia, e ela simplesmente ponderou e decidiu que, seja lá como fosse, só dizia respeito a ela, então estava tudo ok. Mas não estava. Quando alguém se DEDICA à você, você não está só. Seu coração, seus problemas, nada é mais apenas sobre você. E agora pagava o preço por “se deixar levar”.
Ele estava lá, aquele olhar decepcionado que ela odiava, e sempre odiou. Esperando que no final tudo desse certo, porque a vida era assim, afinal de contas, porque no final tudo dava certo para ela. As coisas que ela queria, os doces que ela gostava, as palavras que ouvia. Não apenas por mérito, mas porque alguém havia se DEDICADO a ela. E aquele era o monstro dela. Aquele amor que ela julgava, realmente julgava que poderia nascer ali, e que nunca nasceu. Aquela culpa por não poder dizer, apenas abrir a boca e falar que não havia amor e nunca houve. Que ela não se dedicava. Mas se importava.

Sentado na cadeira, olhando-a. Dentro daquele apartamento pequeno, cujas as paredes pareciam se fechar, como naquele filme que viam juntos no cinema decadente. Ela também não parecia bem, era o que ele sentia, mas não era como se ele também estivesse muito feliz. Era ela, a mulher DELE, aquela que ele cuidava como se cuida de um filhotinho. Ela sempre pareceu um pouco assim, para ele. E por isso ele a cercava, cuidava, a fazia – cada dia um pouco mais – ser o que ela acabou tornando-se. Ou, ao menos, fazia a parte dele.
Ela estava lá, recebendo aquele olhar fixo. Queria simplesmente desviar o olhar e virar o jogo como sempre, fazendo pouco caso daquilo, continuando sua vida de comercial de margarina, mas aquilo não era mais possível. Poderia cortar o sentimento de cada respiração com uma faca muito afiada. Estava muito apertado ali, e sentia que talvez estivesse ficando pálida, como se fica em locais muito apertados e cheios de gente. De tudo que se passava por ela, uma coisa destacava-se. Tudo que ele fez, tudo que ela fez. Não era uma comparação, não era uma oportunidade de culpá-lo ou de culpá-la. Ela entendia.
Ele entendia.
Aquilo era sobre o aprendizado. O que eles levaram tanto tempo para aprender e para assumir. Não adianta ser bom, não adianta fazer o bem. Não adianta fazer a outra pessoa feliz. Tudo que se faz, tudo que se diz, tem vir do lugar certo.
Tem que ser feito pelo motivo certo.

E então só poderia fazer uma coisa: eles se entreolhavam por vários minutos, já. E ela tinha sido a forte o tempo todo. A que acalmava e fazia o que era preciso para seguir em frente. Havia sido covarde, segundo o julgamento dele, e também segundo o próprio julgamento. Deveria ser corajosa em algum momento, e aquela era a última chance. Você pode jogar esperar pela morte ou pode seguir fazendo algo por si. E ela fazia algo por alguém pelo qual ela não amava, era o que havia de ser feito naquele momento. Depois de tudo, sentia que devia isso a ele. Então, sem dizer uma palavra, levantou-se da cadeira que ficava em frente à dele. Pôs tudo no lugar, como ele sempre pedia. Foi até o quarto, batendo com os pés, apesar das reclamações do vizinho de baixo. Olhava para baixo, como que inconsolada, apenas porque não havia outro modo de proceder. Permitia-se isso, pois sabia que ele havia ficado na sala, de costas para ela. Então seguia, seu salto alto de grife batucando no chão, fitando a mancha de tinta escura que o vinho havia deixado na semana anterior, e pelo qual ela nutria uma profunda raiva e um enorme incômodo. Sentia que era apenas uma mancha, mas usou aquela raiva a seu favor, e foi essa força que veio dela que a ajudou a fazer as malas. E enquanto aquela raiva inflava dentro dela, sua cabeça foi erguendo-se como um balão que se enche de gás. O corpo foi ficando ereto enquanto colocava a mala de rodinhas no chão. Foi até a porta. Voltou. Olhou o espelho que tantas vezes a havia visto levantar nua depois de uma boa noite com o marido. Ocorreu-lhe algo que de repente parecia importantíssimo. Retocou o batom, como se precisasse dele para ficar de pé, como se ele a ALIMENTASSE, e saiu. Cabeça erguida, ignorando a existência dele por completo. Friamente. E sabia que aquilo alimentaria tudo que ele achava dela, mas sabia que, se o olhasse, seria mais difícil seguir em frente.
Apanhou o elevador, apertou o botão até acender-se uma luz verde, que indicava que o elevador estava entrando em movimento. Um enjôo foi crescendo de repente, um bolo na garganta que parecia apenas crescer, e sabia que, se respirasse, a pizza que comeu no jantar viria cumprimentá-la. Mas não foi assim que aconteceu. Ao invés disso, as portas se abriram, ela saiu, cabeça erguida, olhar profundo de quem tem algo a dizer para melhorar o mundo. Entrou no carro. Sentou no banco e o carro não ligava. De repente, aquilo era a pior coisa que existia, e ela chorava como se aquilo significava a morte. Simples assim, nada de lágrimas vindo aos poucos. Apenas chorava. Chorava porque o carro não ligava, porque a dieta não funcionava, não conseguiria chegar ao destino. Chorava porque precisava simplesmente sair dali. Mas chorava, principalmente, porque o AMAVA, e porque havia decidido sozinha e tomado a iniciativa de deixar o homem que ela AMAVA – e repetir aquilo fazia qualquer dor parecer brincadeira – para trás, porque não sabia mentir, porque não sabia dizer a verdade. Porque não sabia como agir, e agora não dava para simplesmente subir e dizer “olha, foi um engano, me perdoe e vamos para a cama, querido”.
E ele continuou sentado. Olhando a parede, parecendo olhar ATRAVÉS dela, vendo algo de extrema importância. Só queria que ela voltasse. Só queria vê-la de novo, tirar-lhe o vestido, bagunçar-lhe o cabelo e seguir em frente. “Seria capaz de passar por cima disso de novo”, era o que buscava manter em mente. “Fazer essa dança novamente”, era a forma DELA dizer. Ouviu-se repetir alto um “Dançar de novo”. Levantou, olhou pela sacada. O carro ainda estava lá, a mala do lado de fora, a porta fechada, os vidros abertos. Ela estava lá dentro. Não parecia fácil para ela, e ele imaginava que aquilo deveria significar algo, mas sabia, no fundo SABIA que não podia descer lá e dizer “Não seja boba, vamos, venha comigo” e dar-lhe a mão para que voltassem para casa.
Aquele era o fim, e ele sabia.
Os dois sabiam
Olhavam-se à distância, sentindo apenas que fizeram o que era certo pelos motivos errados. E aquilo havia sido fatal.


Cada vez mais,
SweetieSour .

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