quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Verdade Oficial, Mentira Real

Enquanto remexia nas fotos antigas, prestes a serem encaixotadas, lembrava dos dias que teve, do cheiro dos doces que comia escondido da mãe no fim da tarde, de como era quando criança. Pensava que a criança que via era só uma criança, mas isso havia mudado. Crescida, empregada, ocupada e devidamente munida de desculpas para fugir de si, chegar em casa era a pior parte. Não que a casa fosse a culpada, era uma boa casa, feita para a mulher respeitada e respeitável que era.
Mas mesmo nos negócios ela era o que era: conhecida pela ousadia e pela coragem, ela era temida, não amada. Nunca havia sido amada, essa era a triste verdade. A verdade que encontrava em casa, e nenhuma casa mudaria isso. Os negócios começavam a lhe fazer mal, tudo que ouvia e que era levada a dizer a fazia pensar no que era em casa. Era triste, mas não realmente infeliz. Não o tempo todo, só quando pensava nisso. Enquanto deixava a casa pra trás, deixava toda a tristeza.
Não deixaria. No fundo, ela sabia disso. Sua impaciência, sua intolerância, toda aquela implacável coragem que a fazia ser a líder que era, estava encaixotada. Mas o pior de tudo era o medo. Via nas fotos e nas lembranças o quanto tinha fugido a vida toda, via a mentira que era. Seus olhos vazios pareciam não sentir nada. Enquanto era o que era, enquanto devorava suas chances com desculpas e promessas de sábados à noite no escritório, ela mesma ficava para trás. Olhava-se no espelho e sentia medo do que tinha, da tristeza pelo que não tinha e medo de nunca sair dali. Era o que sabia, mas pouco importava (a não ser quando parava pra pensar naquilo). Os sábados à noite (assim como todos os outros dias e horas da semana) pertenciam aos papéis, à empresa. Ela mesma pertencia à empresa, há muito não podia negar. E pra ela estava tudo bem. Mas não estava. Perto dos trinta, nada está. Estava satisfeita em conhecer papéis e não pessoas, e tinha uma desculpa também pra isso. Era as pessoas, o mundo inteiro. Culpava a humanidade por ter medo. Sua vida não era nem nunca foi realmente sua, e nada no mundo seria. Encaixotava a casa inteira numa busca desesperada de algo que não teria.
Fora dali o mundo era o mesmo, e nunca era dela. Mesmo um mundo covarde não pertence aos covardes, e era o que ela era. Covarde. Um poço de covardia, pelo menos dentro de casa. Sentia-se um eterno pedaço mecânico de restos, sem aquela... coisa que as pessoas tinham. De acreditar nisso, aquela era a verdade oficial. A verdade era que, o tempo todo, vivia de trocar elogios com esposas de cartões de crédito, que gastava sua pouca paciência com delicadezas capazes de se esgotar com duas frases. A verdade era que não tinha paciência nem delicadeza, e sabia disso. Todos sabiam, e ela havia aprendido a ser o que era, pelo menos oficialmente. E aquilo bastava, porque tudo que tinha era um terninho importado, um carro importado, uma vida inteira que vinha do mundo que rejeitava, e nada dela era dela, vinha dela ou seria dela.
Encaixotava livros, embalava discos e cobria quadros, pois estava de mudança, e era oficial agora. Aquela casa lhe fazia mal, mas qualquer coisa que lhe desse tempo pra pensar, lhe faria. Era a venenosa que os grandes empresários temiam, era os pés que sustentavam a empresa, o sucesso perfeito para a diretoria. Um futuro promissor para o mundo que rejeitava e que a rejeitava, e ela sentia isso, numa verdade extra-oficial. Era aquela mulher vazia no espelho que esvaziava a casa, preenchida pelo medo de si. Sentia-se protegida, acima do mundo que rejeitava, acima das pessoas que odiava só por serem pessoas, e abaixo do que queria pra si, mas não admitiria. Estava satisfeita com a vida e não era infeliz. Não oficialmente.
Não havia nada ou ninguém que mudasse aquilo, era a feliz mais infeliz que jamais conheceria, e alguém que ela não tinha sabia disso. Ele sabia que, dentro dela, sobrara um pouco da menina que foi, e que, mesmo a mulher que era oficialmente, era só uma mulher, e era o que ela sempre seria pra ele. Era quem sabia dos sábados à noite, das férias que nunca tirava, do eterno feriado que seu coração lhe deu. Era o que era, era o desconhecido que ela rejeitava, que a procurava e que não cansava de querer estar com ela. Era agora o que fazia as malas e ia embora da vida da mulher doce que era só o que era. Era sua última chance, e estava fazendo as malas. Não tinha medo ou pena, mesmo que desejasse tê-lo. Só estava cansado, estava exausto do que sentia quando ela se esforçava pra se ser oficialmente. Tinha fé no próximo a não acreditar, mas ele acreditaria. Estava fazendo as malas e iria embora do desejo tolo de ser dela um dia. Cansou dos sábados à noite e dos papéis dela, e iria embora. Ela encaixotava toda a sua vida de casa em casa, e pra sempre o faria. Se mudava também dele, e as teias que tinha no espaço reservado aos sentimentos que jamais dedicaria ao rapaz também iam embora.
Olhava as fotos do quem era, olhou o terninho, os papéis, olhou em volta e se sentiu pronta pra ele. Pronta pra ser extra-oficial, mas não teria outra chance. Nem forças. O que restara do rapaz agora pertencia ao mundo que ela rejeitava. O que sobrou dele estava preso na geladeira, num pedaço de papel com uma promessa de voltar algum dia. Estava só, era oficial agora. Ela tirava sua vida das caixas, a casa não a mudaria. Nem mudaria a casa. Abriu o jornal, amanhã era sábado à noite, um sábado tão distante quanto sempre foi. O telefone não tocou e suas desculpas estavam tão ultrapassadas quanto ela. Olhou as fotos, não tinha nada mais que aquilo. Agora sua vida seria feita de um passado alegre que sabia que existiu, mas que não lembrava como sentia. Aos poucos esquecia quem era, e não se culpava por isso. Se esvaía na sua felicidade de papel, enquanto se tornava a mulher poderosa que você verá no caminho para o trabalho, e que nunca conhecerá de verdade.

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