quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Era uma vez... Triste.

A casa, com seus tons pastéis, parecia aumentar seu tédio. E a garota, com os olhos negros e pálidos, fitava a borboleta, que se desvencilhava da fumaça e prendia sua atenção à medida que se aproximava da janela. Aquela chuva de fim de tarde parecia que ia inundar tudo que estava ao seu redor. Mas, no momento a única preocupação da menina era em livrar-se da mesmice do cubículo na qual se recolhera. A única cor em seu campo de visão vinha das asas cor mostarda da borboleta que, num momento de distração da garota, simplesmente sumiu da janela. O mundo da garota então ficava cada vez mais triste enquanto se transferia lentamente ao passado que ela lutava pra esquecer. A mente se enchia de idéias pavorosas e de ilusões que ficavam cada vez mais reais enquanto ela se encolhia embaixo da janela gradeada que era sua única passagem para o lado de fora das grossas paredes mal iluminadas. Havia ficado dias recolhida naquele espaço minúsculo e pouco mobiliado, mas, naquele fim de tarde, em meio aquela chuva, resolveu tomar coragem e libertar-se do seu mundo, que mais parecia uma prisão, a qual conhecia muito bem cada centímetro.

Girou então a maçaneta da porta que se encontrava aberta, correu pela casa velha e suja e, ao chegar a porta, apenas pensou naquela que, pra ela era a forma mais fácil de tirar seus pensamentos da mente. Sem hesitar, correu para o banheiro, tomou suas pílulas calmantes e meteu-se embaixo do chuveiro com a água mais gelada do que nunca. Queria limpar a mente, queria esquecer tudo que viveu e recomeçar, como um bebê que acabou de nascer. Então, abriu o vidrinho de xampu e espalhou pela cabeça. Achava que aquela mistura ensaboada pudesse entrar no seu cérebro e lavar sua memória. Esfregava a mistura também nos olhos irritados, não queria rever aquelas imagens de novo. Nem em pensamento. Aquele banho durou horas até o vidrinho recém-aberto esgotar-se por completo. Ela fechou os olhos com força, havia chorado até seu nariz entupir. Seu rosto estava inchado, mesmo com toda aquela água caindo agressivamente por ele. A mistura que ela jogou pelo corpo estava descendo pelo ralo, junto com sua memória recente. Ela sentou-se no chão verde do banheiro e simplesmente esperou a água escorrer o sabão imundo de idéias persistentes para fora de si. Mas os olhos irritados ainda podiam enxergar que o sabão escorria com dificuldade pelo corpo ainda vestido.

Foi acometida por uma fraqueza, via as paredes de azulejos amarelados embaçarem e girarem ao seu redor. Estava fraca. Sua visão ficava turva e os segundos, se arrastavam vagarosamente enquanto sentia mais shampoo escorrer pelo rosto. A suave espuma descia lentamente rasgando os olhos como uma tortura, uma tortura que ela mesma escolhera num impulso e da qual não se arrependeria. Aquilo parecia jamais acabar. Mas acabou. Ela esqueceu tudo o que lhe tirou o sono por anos a fio, quando caiu violentamente no chão do banheiro. Ninguém estava ali. Mas havia marcado um encontro as três com mais um daqueles bêbados nojentos que recebia naquele sobrado. As três, pontualmente, as batidas da porta podiam ser ouvidas por toda parte, os vizinhos ansiosos por algo que os distraísse, juntaram-se rapidamente na porta da insossa mocinha. Após incansáveis gritos e batidas, o grandalhão cambaleante meteu o ombro na porta já antes arrombada e entrou impaciente na casa, seguido de alguns intrusos curiosos. Correu para o banheiro ao ouvir o som do chuveiro ligado e encontrou uma mistura de sabão vermelha descendo pelo ralo. Era a garota, desmaiada pela força com a qual meteu a cabeça no chão ao cair. Reparou o vidrinho de shampoo caído ao lado dela que se misturava com seu sangue. Não sabia há quanto tempo estava ali. Apenas correu e pediu socorro, na esperança da pobre mocinha recuperar a consciência.

Após algum tempo, não sabia quanto, ela acordou, na mesma escuridão do lugar apertado onde vivera por anos. Acordara em seu caixão, que tinha um pequeno mostrador, igual à janelinha por onde sonhava com o mundo pra ela tão distante quanto outra dimensão. Dessa vez, a janela era um pouco mais escura, havia terra cobrindo-a, e aquelas memórias estavam voltando outra vez. Sentiu-se como no banheiro, aquelas visões a apavoravam, ainda sentia o cheiro de erva-doce do shampoo em seu rosto. Aquele desespero aumentava, o ar faltava e os segundos se arrastavam outra vez. A visão turva já não lhe preocupava como antes, nem a fraqueza do corpo. Não sabia onde estava, queria esquecer, queria sair, renovar-se, rasgar sua pele em cortes profundos como quem libertava as impurezas de uma vida inteira. Mas não conseguia. Não conseguia mexer-se, nem respirar, nem perfurar seu corpo. Mas conseguiu esquecer, dessa vez definitivamente. Foi vencida por um sono irresistível, do qual ela não sabia, mas não acordaria nunca mais.

Um comentário:

  1. ai ai ai tá virando clichê eu vir aqui e falar que está lindo... mas fazer o que se tu escreve textos maravilhosos...bjbjbjbj

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