segunda-feira, 23 de julho de 2012

Chovia.

Ela na sala meio escurecida, sentada na poltrona, olhando para os lados, sem acreditar muito no que havia acontecido. As fotos ainda estavam espalhadas por todos os lados, as fotos deles abraçados, sorrindo, felizes como o bom casal que eram. Olhar praquilo a fazia perder todas as forças, e ela ia enfraquecendo. Aquela sensação a consumia, parecia preenchê-la por completo, a lembrança de tudo que havia dito e de tudo que lhe escapou no momento. Lembrou-se do quanto se sentiu atingida, colocando no lugar todos os pensamentos soltos, enquadrar cada sentimento no seu lugar, cada gesto encaixotado. Parecia interminável, parecia impossível. Ele era impossível, e a tirava cada vez mais do sério enquanto ele ria, o cheiro do descontrole chegando às narinas. Ele sabendo o que ela tentava fazer, tendo certeza do insucesso e soltando risinhos discretos, a boca mexendo-se o mínimo possível e o som da voz grossa saindo do sorriso. Ela ficava linda naquele papel de incerteza.

Ela o odiou pela sua pretensão. Parado à sua frente como um monge, rindo como se fosse superior, sempre odiou isso, mas se odiava mais ainda por não conseguir sentir a raiva que aparentava sentir, apenas a lamentação de algo que acabava cedo demais. Algo que, segundo sua mãe, nem deveria ter começado. Continuava tentando racionalizar seus motivos. “colocar as coisas no lugar”, era como ela chamava. Ele mudara tanto desde quando se conheceram que mal podia reconhecê-lo. Apesar de todo o resto, ele ainda tinha aquele sorriso de ventríloquo, meio sarcástico e meio divertido, que se desintegrava quando ela o olhava daquela maneira.
Ela guardava aquele olhar para aquele sorriso, que por sua vez ele reservava para os momentos em que não sabia se estava certo ou errado, se escondendo atrás da própria cara de monge, e o homem atrás do rosto tinha a certeza de que aquilo acabaria bem, esse era o significado do sorriso. Dessa vez não sabia se terminaria bem, não sabia sequer se terminaria. A chuva desabando do lado de fora, ele com medo de ir embora, e seu sorriso deteriorou-se antes do olhar ameaçador dela, que, segundo ele parecia mais um “você não entende mesmo”.
Ela não parava de falar, ele ora ouvindo, ora desejando-a, ouviu uma palavra qualquer que o fez explodir como uma faísca perto da pólvora, e desatinou a falar. Por algum motivo, a paz entre o casal parecia existir naquele momento, onde os dois estavam sintonizados na mesma estação, ele sem a pretensão no rosto, ela sem o monopólio do descontrole. Disseram todas as palavras que existiam, se magoaram, e o arrependimento estava presente na sala. Apesar dos dois terem sentido isso, ambos sabiam que cada palavra dita era verdade, e se tudo era realmente assim, um deles deveria fazer a gentileza de acabar de uma vez. Um esperava pelo outro, e o silêncio instaurou-se.
Dentro do vestido florido, colocado para ser tirado, na esperança dele entender de uma vez, ela viu no sorriso dele que seria diferente. Ele mudara, ela mudara. Ela queria dizer isso, mas nunca era simples dizer algo assim, não pela frase, mas pelo que vem depois. Os dois se deram conta de que ela se escondia atrás da racionalização, do ódio por ele ter mudado, e da raiva de não conseguir parar de querer que tudo aquilo acabasse e terminasse pela manhã enquanto ele tentava fazer pouco dos alertas anteriores de que o desgaste da relação batia à porta deles. A relação estava finalmente com os minutos contados, o silêncio insuportável, a chuva piorando, o som da água no telhado parecendo um blues melancólico de fim de relacionamento. Diante de todos aqueles insights-malditos-destruidores-de-lares eles ficavam indefesos, não se pode competir com a clareza de certos momentos.

Ele, deitado no sofá, ensopado, escondendo as lágrimas com a água da chuva, se perguntando se era mesmo tudo aquilo, como podia ser tudo aquilo, porque havia sido assim. Talvez tenha tido medo, talvez tenha sido arrogante, talvez seja só uma das coisas que acontecem na vida da gente, como se isso explicasse ou justificasse qualquer coisa, e essa era uma das coisas que se dizia para deixar aquilo de lado, mas não funcionava mais. Só conseguia pensar em como ela estria naquele momento, as mãozinhas delicadas sujas de tinta dentro do quarto inacabado, colorido e meio desenhado, molhando a tinta com as lágrimas, amaldiçoando-o e se arrependendo dele para sempre. Diante da possibilidade ele sentiu um desejo impossível de abraçá-la, consolá-la, chamar-se de canalha só pra ela sorrir aquele risinho bobo de novo, quando notou que jamais veria seu sorriso bobo outra vez.

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