Um ar de perfeição pairava no
ar pesado cheio de sons, nada romântico. Era quase uma afronta à felicidade
repentina dela, que não conhecia um local mais complicado. Era acostumada com a
simplicidade, locais lindos e calmos servindo de moldura para quando ela
entregava seu coração. Mas aprendeu da pior maneira que molduras bonitas não
fazem bons quadros. Seu coração logo se acostumara aos baques, pedradas.
Parecia estar sempre despedaçado, colado com saliva, colorido num tom
superficial de qualquer coisa. Mas, ao menos, era uma boa moldura. Não sabia o
que seria do seu coração naquele local, talvez não sobrevivesse.
Mas sobreviveu. Vinha se
acostumando ao local diferente, ar pesado, sons estridentes. Um local intenso e
desinteressado, embora grandioso. Parecia que nada importava, e sentiu-se só.
De repente, as coisas começaram a dar certo, pra variar. Era um sim. Calmo como
quase nada naquele grande espaço vazio e preenchido, e aquilo a surpreendera.
Eram cores que brotavam, as coisas se encaixando. Sentiu que sempre havia algo
acontecendo naquele mundo, que parecia infinito e inesgotável, com uma quase
necessidade de ser desbravado. Não entendia como aquilo podia ser comum,
parecia estar em outra dimensão, vendo e ouvindo tudo com uma atenção quase
cansativa de um cérebro preguiçoso que não queria processar mais nada. Mas se
encaixava, e ela de repente estava ali, ouvindo um sim dançante, devagar, mole
e macio, quase pegajoso. Um olhar escurecido preenchia o momento, o ar
cintilava em volta dela, o seu corpo agradecia àquele momento vivo, onde as
cores voltavam para dentro dela. Era algo acontecendo, tudo acontecia ao mesmo
tempo, o que não era natural para a mocinha que não era mais tão falante assim.
Estava ali diante dele, que
era um desconhecido (depois de despedaçar o coração algumas vezes, ela notou
que todo mundo era desconhecido, fosse quem fosse) que ela vira há alguns
meses, e que a fez colar seu coração com cola quente, ao invés de saliva.
Estava de volta ao mundo. Tudo se encaixava, fazia sentido, e aquilo era
surreal ao invés de comum.
Aquele par de olhos escuros
brilhavam o tempo todo, e aquilo a fazia sorrir de novo e de novo. Decidiu
esperar, mas seu coração pulava como se quisesse sair de dentro dela. Estava
acontecendo de novo. Teve medo, claro que teve, sempre tinha, havia se fechado
para sempre umas mil vezes, mas era insuportável ela não ter ninguém pra jogar
cartas à noite, ver um filme ruim ou se distrair ao invés de comer
compulsivamente sem engordar um grama sequer. Era uma moça bonita apesar de
triste, e alguém notara isso. E era um sim, acompanhado de qualquer coisa que
não importava, porque havia aberto uma porta dentro dela de onde saía uma luz
que ela não sabia que tinha.
"Sim, mas veja
bem...", era o que ele tinha dito. Fez uma pausa que lhe deu alívio, quase
quis desistir da frase, mas ela o olhava de um modo tão terno que, embora
tornasse tudo muito mais difícil, o fez ter certeza de que ela merecia aquele
momento, visto que a outra opção era sair correndo e se sentindo culpado, sumindo
para sempre num enorme espaço vazio e preenchido ao mesmo tempo, perfeito pra
sua covardia. Era hesitante, sempre foi. Tão hesitante quanto bonito, o que o
fez se acostumar com esse tipo de pausa longa, mas nunca suficiente.
Eram poucos segundos, e o ar
ia ficando pesado, de uma alegria insuportável, como sempre ficava quando algo
estava errado. Estava fora do lugar, preenchido com cores que lhe doíam, e ele
só queria colocar uma enorme pedra naquela situação. Então abriu a boca, encheu
de ar, e voltou à sua pausa. Engoliu o seco, e viu que era agora ou nunca.
Tinha que ser antes que piorasse, ele não suportaria.
"...acho que esse não é
um bom caminho.", terminou a frase, embora o que lhe passou pela cabeça
foi algo mais próximo de um "não me faça sentir um completo canalha por
não estar alegre como você, que fica mais bonita quando sorri, mesmo que não
devesse estar sorrindo". Ou tivesse pensado em apenas correr, antes do seu
cérebro congelar completamente. A frase não era suficiente, sabia que tinha algo
a dizer, mas sabia que não precisava de tanta clareza, ou aquela moça frágil e
doce que tinha um olhar de "estou pronta para ser feliz" e cheiro de
qualquer coisa muito atraente que nunca conseguiu descobrir o que era
simplesmente iria ao chão. Ele queria voltar atrás e tentar enrolar ainda mais,
enganar a mocinha, não por pena, mas porque era difícil se separar daquele
cheiro, ignorar aquele olhar e não querer fazê-la feliz dia e noite, enquanto
tivesse forças para isso. Mas aquilo não bastaria, e embora ele tivesse um
certo ar de cafageste (que ela ignorara completamente, porque era meio
hipnotiznte), não chegava nem perto de sê-lo.
Foi quando o sorriso se
desfez. As luzes do mundo pareciam ter se acabado, como no fim de alguma
tragicomédia que a fizera se sentir uma boba. O hiperrealismo foi embora, e ela
desejou jamais tê-lo sentido. Sentiu no ar que deveria ter notado que alguma
coisa estava errada, mas dentro dela persistia aquele desejo de estar enganada
dessa vez, e seu coração não se quebraria como açúcar mascavo. Sentiu-se
culpada por ignorar o resto da frase, mas era inevitável. Olhou nos olhos dele,
e ele tinha algo errado. Um ar de quase-culpa pela sua tristeza que tornou o ar
insuportável. Ela abriu a boca, encheu-a de ar. Engoliu o seco, e abriu
novamente a boca, como se tentasse lembrar de algo rude para dizer que não
constava em seu repertório. Soube que não tinha nada a dizer, a não ser
"Sou uma idiota, não é culpa sua". Quis abraçá-lo, como se aquilo
tornasse algo mais fácil. Não sabia o que fazer para aquele momento acabar,
seus pés fincaram no chão. Quis acender um cigarro e fazer aquela cara de
desimportância, mas nunca havia fumado na vida, a não ser por aquele ar preto
que ela achava que havia preenchido o mundo inteiro, como se encerrasse a cota
de ora-mas-que-desgraça combinada com o-que-vou-comer-no-almoço. Quis desabar,
quis nunca ter ido àquele lugar. Talvez, ela pensou por um segundo ou dois, não
fosse ouvir nada daquilo, mas sabia que iria, algum dia, alguma hora. Quis
culpa-lo, quis culpar-se, quis encontrar uma forma de fazer com que as coisas
finalmente fizessem sentido, mas não existia. Era assim, "não entregue seu
coração quebrado. Ao invés nisso, faça algo de útil", foi uma velha lição
que lhe passou pelo cérebro quente em fração de segundos.
Ela se quebrava, rompia um
limite que sabia que estava chegando cada vez mais perto dela. Antes de se
descontrolar, sumiu na névoa, no preto-e-branco do apagão no mundo inteiro, ele
parado, mais culpado que vivo, ela cambaleando vacilante, fazendo as pazes com
o sentimento de que era uma completa idiota por achar que seria diferente. Ele
com medo de que ela realmente fosse ao chão, ela desejando ser firme em cima
dos chinelos, com aquele ar inocente de quem não sabe que é bonita que não a
largava, e que ela não sabia que infestava o ar desde seus quinze anos. Ele
vivo, seguindo a vida, voltando pro trabalho chato, cansativo, mas que se
orgulhava de ter escolhido, sabendo que um café pela tarde e um uísque a noite
lhe faria se sentir como se nada tivesse acontecido. Ela, com os olhos
marejados, o corpo se movendo como uma onda, o coração desejando uma bela
moldura para se quebrar, prestes a entrar na primeira porta aberta que lhe
desse um copo de alguma bebida forte e doce, para se conformar mais rápido e
lhe criar a velha saliva que colaria seu coração para que pudesse trocá-lo por
um filme do Woody Allen.
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