sábado, 28 de julho de 2012

Mulher

Olhou para fora e viu o céu alaranjado, a luz que entrava pela enorme janela de vidro tomava conta do quarto que já fora escuro. O abajur branco agora estava colorido e parecia anunciar o movimento temporal do mundo lá fora. Dentro do quarto perdera-se das luzes e a noção do tempo.
Fitou o sol na tentativa de saber se era dia ou noite, tentando criar empatia pela ideia de voltar ao mundo real. Pensou nos pontos cardeais e soube que não sabia onde ficava leste e nem oeste. Riu da própria incapacidade que julgara impossível. De repente deu-se conta do riso, o primeiro depois de acordar. Quis levantar, mas algo a prendia na cama.
Aquela sensação a consumia. Fechou os olhos e conseguiu localizar cada pedaço do seu corpo, como um escoteiro que se localiza pelas estrelas do céu e quase podia tocá-lo. Sentia o cheiro do perfume que hvia marcado seu corpo para sempre. Parecia ter ouvido um som, e a sensação a fez contorcer-se. Em seus olhos se passavam as imagens dos antigos dias alaranjados, os mais diferentes locais, uma coleção de suspiros.
Revolveu um corpo seminu na cama. A camisa longa e cinza lhe parecia um vestido amassado e descuidadamente curto, onde lhe apareciam as pernas grossas e lisas, com algumas marcas de infância lhe desenhando o corpo a mostra, ocultando o quadril, a cintura e o ombro, onde havia um desenho pequeno, sinuoso, quase convidativo, do lado esquerdo. Mais abaixo, suas pernas revelavam um enorme sinal que era sua marca registrada. O corpo percorria a cama, cheio de vida, em movimentos delicados, misteriosos. Antes que se desse conta, sua cabeça ficava cada vez mais cheia de pensamentos reprimíveis e desejáveis, e ela fez força para expulsá-los, apesar de parecer inevitável diante daquela tal lembrança. Quis encontrar o homem, sair e buscá-lo pela rua, mas as fotos nos quarto lhe mostravam os mais diversos motivos para não sair de lá.
E continuava a revirar-se, o pensamento reprimindo, os olhos observando a metade da cama engomada que sinalizava a solidão. De repente soube que não precisaria mais reprimir o desejo, a luz laranja invadindo o quarto, ocupando o espaço do amante, fazendo-a fechar os olhos escuros na cama meio quente, meio feita, e que assim continuou como se esperasse o corpo para ocupar o espaço e desarrumá-lo, como a luz laranja não é capaz de fazer e como devia acontecer com todas as camas. Chovia, e não se sabia se anoitecia ou amanhecia, mas o som da chuva convidava seu corpo quente a permanecer onde estava. O som gelado, os pés nus e o corpo a mostra dentro da camisa que não tinha pretensão alguma de vesti-la. Quis novamente levantar-e, repousou os pés no chão gelado, e o frio imediatamente congelou suas veias, ela tirando uma camisa amassada e correndo em passos curtos em direção ao banho, guardando um gesto mecânico para a torneira e se afogando na água gelada, os cabelos ensaiando uma vida quase incômoda, os pêlos ouriçados pelo frio. Desejou que qualquer um entrasse pela porta para ensaiar um recomeço, a pele enrugando e o frio aumentando, os olhos irritados com o sabonete, limpando os pensamentos desejáveis.
Tremeu, enrolou-se numa toalha macia e voltou para seu abajur ao lado da cama meio desfeita, o vulto negro tomando conta do quarto e preenchendo os espaços vazios, como toda sombra diante de um céu de qualquer cor quente e indefinida. E o quarto parecia ainda mais vazio, não importava o que lhe preenchesse. A chuva continuava, o corpo novamente na cama, a toalha jogada em cima do carpete novo e limpo, esquecendo o corpo espalhado, conservando a parte feita, e aquilo a matava. A cama já molhada pela água, o travesseiro encharcado, as lagrimas percorrendo o corpo a mostra, delineando a silhueta, ardendo e queimando, farto de curvas e de dores, procurando um recomeço.
Olhou para o teto, deitou-se em posição de morte, procurando a vida que já teve antes. Não lhe importava o antigo amante ou qualquer outro que já tivesse tido, não lhe importava o poder que exercia sobre eles ou nada daquilo. Por um momento era apenas um corpo: nu, laranja com o sol, molhado pela água salgada. Um coração inacessível. Ouviu novamente tudo que já havia dito a si mesma sobre a situação, repetiu mentalmente o recomeço, explicou para ela mesma todo o medo da dor, do passado e do futuro. Entendeu, naquele momento, que todos aqueles dias que passou pensando nas opções que tinha de seguir com a própria vida não lhe serviram de nada; muito pouco era o que ela conseguia controlar. Teve medo. Não de recomeçar e errar novamente, mas de não ter novos motivos para cometer novos erros. Teve medo de não acertar de novo, e se perguntou quantas vezes mais ela cairia e se reergueria. Mas pensou também que o futuro a esperava, e aquela garoa safada que zombava dela e duvidava da sua capacidade de levantar da cama a deixou mais ansiosa. Impaciente, jogando o corpo agora nu de um lado a outro, o coração palpitando dentro do peito, os seios movendo-se sutilmente com as batidas.
Com a cama meio desfeita e uma cor laranja entrando pela janela do quarto, sem ter ideia se era dia ou noite, muito menos em que dia da semana estava, pousou-lhe como uma folha seca a certeza de que o futuro não criaria asas e bateria na porta do quarto, então levantou-se, entrou num vestido qualquer e encaixou os pés em um sapato colocado cuidadosamente ao lado da cama; jogou o cabelo curto para o lado e saiu, a chuva marcando o corpo, o frio embaçando a vista. Era o pior lugar possível, mas ela estava pronta para o homem que, de uma forma ou de outra, estava com ela há tempos, e por mais que já tivesse saído para encontrá-lo tantas vezes, nenhum encontro jamais seria como aquele. Tinha um novo encontro com o recomeço.

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